Teúda e Manteúda, a outra legítima
por, Joana Vasconcelos | 3 de Novembro de 2010
TEÚDA E MANTEÚDA
(1 de Julho de 1867 — 3 de Novembro de 1910)
Amante. Amásia. Concubina. Manceba. A outra. Mas não qualquer outra. Teúda e manteúda, porque de casa posta, sustentada pelo seu casado benfeitor, o qual provia a todas as suas necessidades materiais, a troco da sua constante e plena disponibilidade e da exclusividade dos seus favores.
A teúda e manteúda fazia parte do modelo social da época. Reflectia a prosperidade e alimentava a vaidade daquele que a tomava e mantinha, permitindo-lhe exibir ao círculo em que se movia a sua virilidade e o seu domínio dos ways of the world. E, não faltava quem o sustentasse, seria também o sustentáculo de muitos casamentos, ajustados e mantidos por conveniências várias, da continuidade de nomes e títulos, à consolidação de património, passando pelo mutuamente vantajoso intercâmbio de prestígio social e conexões relevantes por desafogo económico, assente em fortuna recente.
Por tudo isto, mais que tolerada, era aceite. Pela sociedade, que nela não via, muito pelo contrário, uma ameaça à harmonia conjugal e à paz doméstica. Pela mulher casada, desde tenra idade instruída para ser boa esposa e mãe, logo bem ciente dos deveres que lhe cabia cumprir, se não com entusiasmo, ao menos com boa cara — e dos quais fazia parte o não tomar conhecimento de certas coisas. Porque o homem, já se sabe, tem necessidades.
Sucede, porém, que entre nós se foi além, muito além, nesta matéria. E durante mais de 40 anos a teúda e manteúda beneficiou de um raro e extraordinário estatuto, que não só lhe reconhecia e banalizava a existência, como a legitimava, enquanto ocorrência normal na vida de um homem casado. Dentro de certos limites, impostos pela decência e pela razoabilidade, claro. Eu explico.
O nosso primeiro Código Civil, aprovado por Carta de Lei de D. Luís, de 1 de Julho de 1867, impunha a mulher e marido a obrigação de “guardar mutuamente fidelidade conjugal”, mas modelava o conteúdo desta bem ao sabor dos padrões vigentes. Donde, se permitia o divórcio perante o “adultério da mulher”, sem mais, exigia, para o mesmo efeito, sendo o homem a cometê-lo, além do propriamente dito adultério, que este envolvesse “escândalo público”, “completo desamparo da mulher” ou, pior, que se consumasse “com concubina teúda e manteúda no domicílio conjugal”*. O Código Penal de 1886 confirmava esta desigual valoração dos adultérios, punindo a mulher prevaricadora e o seu cúmplice com prisão “de dois a oito anos” enquanto aplicava ao “homem casado” que tivesse “manceba teúda e manteúda na casa conjugal” uma singela multa**.
Da primeira destas esclarecedoras normas resultava, antes de mais, que fora dos casos nela descritos, em que o adultério marital ocorria em circunstâncias inaceitáveis, porque especialmente embaraçosas ou indignas, o mesmo era irrelevante. Ainda que decorresse de forma continuada, estável e organizada, com uma amante fixa e oficial. E resultava também a atribuição a esta de uma posição própria, como mulher de facto, com o seu espaço e os seus deveres bem definidos: desde que soubesse ser discreta e moderar as suas expectativas, i.e., manter-se no seu lugar, a teúda e manteúda gozava do beneplácito e da protecção da lei, enquanto amante legítima — tão legítima quanto a legitima esposa, cuja existência e papel social lhe cabia respeitar e em momento algum questionar ou cobiçar.
Mas porque não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe, este estado de graça da teúda e manteúda haveria de chegar ao fim.
A Lei do Divórcio, elaborada nos primórdios do regime republicano, sob forte pressão das organizações feministas que, tendo contribuído para o triunfo da revolução, exigiam a adopção das mudanças por que haviam lutado, traçava um regime todo ele baseado na igualdade entre mulher e marido – quanto à designação daquele com quem ficariam os filhos, à partilha de responsabilidades com a sua educação e sustento, à prestação de alimentos entre ex-cônjuges e, inevitavelmente, quanto aos motivos do divórcio.
A complacência do Código Civil novecentista em matéria de adultério masculino deu lugar à estrita aplicação ao marido do que valia já para a mulher. O elenco legal de causas de divórcio litigioso passou a referir, ao lado do “adultério da mulher”, o “adultério do marido” – sem contemplações, graduações ou nuances. No plano criminal, o adultério deste foi expressamente “igualado em carácter e gravidade ao da mulher” e como este punido com prisão***. Do adúltero e da sua cúmplice, claro.
Estas novas regras tiveram um impacto tremendo na pacata e confortável existência que levava a teúda e mantéuda. Por via da triunfal preponderância nelas assumida pela mulher casada — doravante a única legítima parceira, não mais forçada a suportar a sua vexante concorrência – foi remetida à clandestinidade e desqualificada, numa degradante equiparação, dentro da torpe categoria das “outras”, às mulheres fáceis e promíscuas e às imorais mancebas de portas adentro. Porque não há duas sem três, passou a estar em risco de humilhação pública, como co-ré num divórcio litigioso ou, pior, e sendo essa a opção da esposa ultrajada, ser presa, como cúmplice de adultério criminoso, porque cometido “durante a vida dos cônjuges em commum”****.
Ou seja, de uma assentada passou de elemento estabilizador do casamento, a co-responsável pela ruína do mesmo. Derrotada em toda a linha, a teúda e manteúda não deixou, evidentemente de existir. Mas, porque o seu tempo passara, a sua vida mudou. Muito e para muito pior.
Foi a 3 de Novembro de 1910. Faz hoje 100 anos.
* Artigos 1184.º, § 1.º, e 1204.º, §§ 1.º e 2.º, respectivamente, do Código Civil de 1867.
** Artigos 401.º, § 1.º, e 404.º, § único, respectivamente.
*** Artigos 4.º, §§ 1.º e 2.º, e 61.º, § 1.º, respectivamente, do Decreto com força de lei, de 3 de Novembro de 1910, o último dos quais alterou o Código Penal, reduzindo para dois anos o prazo máximo da pena de prisão aplicável.
**** Artigo 61.º, corpo e § 1.º, do Decreto com força de lei, de 3 de Novembro de 1910: tal como sucedia já no direito anterior, “o cônjuge offendido” teria “de optar pela acção criminal de adulterio ou pela civil de divórcio (…) com base em adulterio, não podendo cumulá-las em caso algum”.
Retirado daqui: LINK
Nota, para ler tudo, aceda ao Blog da Autora no link acima.
Comentários da mesma autora do texto e para perceber estas respostas, aceda ao blog. Apenas, trouxe-os, para informação acrescentada...
E porque de infâmia aqui se trata, não resisto a pôr mais uns torozinhos de lenha na fogueira: só em Maio de 1975 foi revogado o artigo 372 do mesmo Código Penal de 1886, que dispunha nos inqualificáveis (já para a época) termos que se seguem:
“o homem casado que achar sua mulher em adultério (…) e nesse acto matar ou a ela ou o adúltero, ou ambos ou lhes fizer algumas das ofensas corporais declaradas nos artigos 360, n.ºs 3 a 5,361 e 366 será desterrado para fóra da comarca por seis meses”.
A mesma suave pena era aplicada à mulher casada que matasse >“a concubina teúda e mantéuda pelo marido na casa conjugal, ou ao marido ou ambos ou lhes fizer as referidas ofensas corporais” … mas só neste restrito cenário e caso os apanhasse “no acto declarado neste artigo”, claro.
Para que nada fique por esclarecer, acrescento apenas que as ofensas corporais declaradas no artigo 366 correspondiam — nem mais nem menos — ao crime de castração, aquele pelo qual alguém amputa “a outrem qualquer órgão necessário à geração”…
(...)a indignidade da posição da mulher, não apenas da oficialmente respeitável, mas não de todo respeitada — pelo legislador e pelo marido – esposa legítima, mas da própria teúda e manteúda, cujo estatuto legal de impunidade e de alguma legitimação não era senão o reflexo da impunidade e da legitimação que verdadeiramente se pretendia conceder às maritais indiscrições, das quais eram co-protagonistas…
Porque bem vistas as coisas, nisto começava e acabava o interesse do nosso legislador pela teúda e manteúda: em momento algum criava obrigações, mínimas que fossem, relativamente a esta ou a eventuais filhos que esta viesse a ter, por parte do homem por conta de quem podia estar anos e anos … até ser trocada por outra mais nova, mais fresca, mais apetecível e mais vistosa … (...)
(...) A verdade é que no plano da lei — e é a nossa lei pretérita que é por mim visada e enterrada neste infame recanto do cemitério — tudo era a preto e branco. Mais exactamente negro no que à mulher respeitava, branco e bem branqueado no que tangia e interessava ao marido.
É indiscutível que a lei reflecte sempre a sociedade que a gera e que se propõe reger, os seus valores e os seus anseios. E que visa sempre modelar comportamentos, às vezes alterá-los mesmo — seja dissuadindo práticas e convicções tão arreigadas quanto inaceitáveis, seja estimulando atitudes e práticas que se têm como desejáveis. Mas deve fazê-lo norteada por valores de justiça, de razoabilidade e de proporcionalidade. Que no quadro legal que produziu a infame figura da teúda e manteúda estavam patentemente ausentes, sendo chocante, e não creio que apenas para os padrões actuais, a desproporção da complacência e da tremenda severidade com que eram valorados os mesmos comportamentos, consoante adoptados por marido e mulher.
Basta recordar o caso de Camilo Castelo Branco, que passou o que passou justamente por via desta mesma lei. E que deu brado na época, estando as reacções ao caso bem longe da unanimidade no apoio ao que estabelecia tal lei.
Ou o enredo do Primo Basílio, em que o desmedido terror de Luísa e o imenso ascendente de Juliana sobre esta de modo algum se explicam pelo mero temor de um escândalo no meio social em que vivia o casal… havia mais quaquer coisa, e quem tão bem escreveu sobre o tema sabia-o bem, porque bem conhecia a mesmíssima lei… (...)
(...)Porque o amor exige liberdade e essas mulheres não eram livres. Não eram livres na escolha de se tornarem “a outra”, de se colocarem sob a protecção e à mercê de um homem que jamais mudaria a sua (dele) vida por elas, de serem a mulher “de segunda”. Não eram livres de sonhar ou aspirar a uma visibilidade e a uma respeitabilidade que sabiam que jamais haveriam de possuir, de serem elas próprias, sem viver no temor de desagradar e de se verem abandonadas, preteridas, trocadas. E claro que a situação só piorava à medida que os anos passavam e se desvaneciam os encantos em que repousava essa sua frágil e equívoca situação…
Tal como não eram livres as respeitáveis mulheres casadas, encerradas em casamentos sem amor ou afecto, impedidas de deles se libertar, a não ser em casos extremos, e fortemente inibidas, com justificado temor, de buscar fora da alcova conjugal – tal como faziam os seus maridos – tudo aquilo que nela lhes faltava.
Nada me move – muito pelo contrário – contra as concretas mulheres que em cada momento foram a amante de casa posta do próspero e respeitável homem casado.
A minha sanha, que motiva este texto, é contra a figura da teúda e manteúda, contra o seu infame estatuto, talhado à medida, não daquelas mulheres e das suas fragilidades – e Deus sabe como as tinham, elas e os filhos que evidentemente nasciam destas relações – mas dos homens que as tomavam e delas faziam sua pertença.
A estes garantia tal estatuto, em primeira linha, a referida imunidade civil e penal. Depois, a submissão de todas as mulheres envolvidas: da amante, porque desprovida de quaisquer direitos e protecção, logo totalmente à sua mercê para literalmente sobreviver, sendo mais que certo o negro destino que a esperava em caso de repúdio ou de abandono, da esposa porque impedida social e legalmente de fazer valer a sua indignação ante uma situação que a vexava, para além de coagida a um comportamento irrepreensível sob pena de graves castigos. Por último, a plena irresponsabilidade do homem para com tais mulheres e seus (e dele também) filhos, que para a lei não interessavam senão como elementos instrumentais e secundários de um modelo social e familiar centrado no homem.
Foi esse modelo, personificado na teúda e manteúda, que chegou ao fim faz hoje 100 anos. Ainda bem, digo eu.(...)
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Bichinho Azul, conta p´ra mim quantos dedinhos e buraquinhos contou por aqui?