Possessão de uma Alma por uma Outra
Crónica por Revisar
Passaram-se vários anos. Tudo tinha sido tão duro e difícil. Emocionalmente caótico e devastador em todos os níveis. Levara vários anos para perceber o que era ser um verdadeiro objecto às mãos de um outro. O que era ser um verdadeiro prisioneiro. Compreendera que o Amor muitas vezes vestia-se com muitos tipos de saiotes e, nem sempre o vestido que os tapava denunciava que havia beleza naqueles.
O que começara por ser uma entrega honesta acabara por se tornar uma obsessão. Uma obsessão que não nascera por acaso. Uma obsessão por verdade e respeito. A raiva nascia por tudo e nada, por culpabilidade e pela fraqueza de não colocar um ponto final. Diz o ditado que tudo o que não nos eleva, acaba por nos destruir e que dar continuamente sem nada receber, acaba por nos matar. Naquele tempo, quando as rosas estavam belas no jardim e a paixão estava toda vermelha e se lutava pela verdade daquilo que se sentia, aquele Outro resolvera num dia como qualquer outro, levado por não se sabe bem o quê, a praticar o acto final que iria derrubar a confiança. A Traição. Há vários tipos de traição e, tudo aquilo que desrespeita o sentimento do outro e o leva a sofrer não pode ser considerado uma relação de amor ou sequer de amizade. Quando não se leva em consideração aquele que escolhemos para estar ao lado, há uma desonestidade.
Aquele Outro, não apenas praticara uma traição, mas vários subtipos de traição. A mentira fazia parte da sua personagem e que já vinha detrás, de uma outra vida anterior. Uma mentira atrás da outra. Sabemos que com o tempo a mentira vai tendo as pernas curtas e um dia fica tudo a descoberto. Vários meses se passaram desde que se conheceram. Um relacionamento que começou como uma aposta entre um determinado grupo. Prendia-se o facto de ser-se difícil. Não era fácil seduzir. Alguns dias depois, iniciava-se um relacionamento sem pés nem cabeça, cuja vida desse Outro era extremamente caótica. Recentemente separado de um longo casamento e ainda tivera a ousadia de fazer uma aposta. Só homens de forte ego é que fazem apostas deste tipo como quem aposta numa corrida de cavalos.
Seis meses após o namoro, numa época farta de flores a florescer, sua excelência o Outro teve a ousadia de ter um caso. Por dias desapareceu. Afirmara que estava com trabalho. Em trabalho lúdico. Foi essa a primeira vez que o corpo se sentiu sem norte, uma angústia avassaladora entrou pelo corpo, penetrou em todas as veias, em todos os nervos, em todas as células. Viajou aos rins e ao fígado e tombou no coração. Ficou quatro dias a olhar para as paredes com um sentimento de sufocação, agressão, devastação. Não se ouvia o menor ruído do Outro em termos físicos, mas todo ele ladrava e entoava na alma.
Quatro dias levaram ao abismo que nunca conhecera. Uma voz indómita ressoava como uma pantera das profundezas e rugia e arranhava com as garras toda a flor da pele, todo o sentimento puro. O filho da puta acabara de cometer uma atrocidade e iria escondê-la com todos os dentes enquanto durasse o envolvimento. Anos mais tarde, confessou à melhor amiga que tinha sido uma besta e que fizera-a sofrer além do suportável. Que ousou das mais macabras desculpas e mentiras para fazer o que quisesse e nunca se importando com o mal que fazia. Era importante tirar-lhe as certezas com que afirmava as suas sensações – intuições, e que eram 99 por cento certas. Dissera-lhe se tivesse sido honesto tudo teria sido diferente e que lamentava o que fizera. ‘’Sim, de facto fora muito mau’’ dissera-lhe.
Naquela tarde, surgiu à frente. Caminhava erguido na sua direcção como se tivesse enchido a barriga, e o ego era o que mais denunciava. Feriu-a, aquela imagem daquele Outro a caminhar na sua direcção. O destino fora fatal, colocara-a na porta para ver a chegada do patife que vinha com um sorriso rasgado de uma ponta à outra. Naquele dia tornara-se um objecto e desrespeitada. Perguntou-lhe, ‘’tantos dias sem dizer nada; o que tens a argumentar com esta atitude?’’
O Outro confrontado rira-se na sua cara. Pela primeira vez subiu-lhe uma violenta emoção, e teve a certeza absoluta que aquele rosto tinha cheiro de uma outra mulher. Encarou-o. Covardemente desmentiu. Afirmou que andava a imaginar demais, que a sua veia de imaginação fértil era fora de série. Anos mais tarde, percebera que não o levara a praticar tais actos. Era já da sua natureza. Um casamento de quinze anos pautados por traições sucessivas à mulher e que foram revelados ao longo do namoro. Agora estava ali a levar com toda aquela vida passada daquele Outro. Estava abatida e desgastada psicologicamente. Foi uma má escolha envolver-se com esse Outro, uma consequência do destino sobre qual não teve controle.
Nunca mais os dias tiveram sabor. As veias envenenadas e teias invisíveis acorrentavam de tal forma que não conseguia a lucidez suficiente para parar. O parar seria apenas um Não. Um simples ‘’Não’’ teria feito toda a diferença. Teria entregue ao destino do Outro a outra coisa e teria salvo a sua própria vida e o seu caminho. Nunca o teria direccionado a um lugar e estilo de vida que nunca sonhara, anos mais tarde esse Outro deixara de ser sombra neste mundo material, onde toda a vida tinha estado!!
Começou a andar curva, nebulosa e cada vez mais pesada. Tinha caído sobre os seus ombros um peso gravitacional enorme. O Outro ria-se. Quanto mais poderoso se sentia mais corrompia e abusava. Era um objecto ao serviço do caminho. Cada dia uma morte ia sucedendo. Um dia entrou em coma de tanta emoção que carregava. Acordou doente. Nunca mais foi igual. A simples presença daquele Outro pela falsidade que sentia, não conseguia torná-la consciente mataram o melhor. Eram tantos fios invisíveis que prendiam cada fio do cabelo. Perdera a razão sobre si.
Sugou o sexo, esse Outro, sugou a alma, sugou a emoção, sugou o destino, sugou o potencial. Esse Outro cuja esposa tentara o suicídio meses após a separação, tentava vomitar a dobrar as sombras todas sobre o corpo franzino daquele ser cujo riso era água a correr. Passaram-se uns anos, estava desgastada fisicamente e devastada psicologicamente e, foi então que a Ruindade resolveu empreender num negócio que implicava uma distância bastante grande e uma ausência igualmente. Um negócio chamativo em termos de ganhos monetários. Para um pobre, aquilo era uma sorte tremenda. Dedicou-se de alma e coração a programar tudo. Esqueceu-se dela. Completamente. Foi nesse tempo que percebeu que não fazia parte do seu destino. Era apenas a meta. Era o euro milhões da sua vida. Às traições, outras traições ocultas e densas surgiram. O Amor não estava nos planos dele, nunca esteve. Nunca viveram juntos, nunca casaram. Ela nunca quis, apesar da obsessão. Coração traído, não tem remendo quando o Outro continua burro. E depois, depois... é difícil amar um mulherengo, mas mais difícil se torna amar um abusador, um aproveitador.
Aquela época que antecedeu a grande viagem que acabaria por se revelar um autêntico fiasco, foi um tempo de escuridão cerrada. Um sentimento devastador indefinido, tendo como pano de fundo a traição. Traição que ajudou a alimentar e que covardemente e sem escrúpulos gozava na cara. ‘’Voçê precisa ir no psiquiatra.’’ - Dizia o Outro. Chegou a viagem, e, toda a inquietação morava dentro. Corroía como ácido clorídrico por todo o sangue. Uma acidez mortal. Não compreendia como ainda vivia.
O sol estava forte no horizonte, colocaram-se diante um do outro. Prometeu que não a esqueceria, era apenas trabalho. Um sufoco atirava ao chão tudo o que era livre. Abraçou dizendo que logo regressaria. Prometera. Sempre prometera. Promessa que nem no passado e futuro desse dia, alguma vez respeitou. Eram tantas as promessas. Agarrou os braços e beijou-lhe a face e os lábios e pronunciou, ‘’gosto tanto de ti’’. Naquele momento passara a gostar imenso. Parecia absurdo. A falsa convicção estoiraria qualquer bomba se ela estivesse por perto naquela altura. Um último beijo. A entrada no carro. O adeus pela janela.
Só por tempo indeterminado. Um mês, dois meses. Não sabia. Só. Estava só junto do carro, deu uma última vista ao carro que desaparecia na curva da rua. Olhou para o céu. Sol tremendo. Ardia. Perguntou-se, ‘’e agora?’’, não ouviu voz nenhuma, apenas um longo suspiro e camadas e camadas de emoções a abandonarem o corpo. Uma vitalidade vinda de algures, misteriosa inundou todas as células. Despertou. Absolutamente viu sair todas as nuvens, todos os pesos que nunca soube explicar de dentro de si. Seu corpo físico, mental e emocional estavam drenando todo lixo. ‘’ Que se passa? O que está acontecendo comigo? ‘’, questionava. Todo o peso emocional daqueles últimos anos estavam a abandonar o seu corpo de forma rápida. De repente percebeu que estava livre. LIVRE. Sentia-se a viver, a reconquistar a sua força. Ligou o carro e voou a alta velocidade em direcção a todos. De imediato lhe leram a aura, e disseram de onde tinha saído? Estava tão bela!!
Que carma andou a carregar naqueles anos de relacionamento; porque tinha sumido de dentro de si qualquer sentimento ou emoção ou aniquilação logo a seguir que aquele Outro partiu? Era um mistério. A quem servia? Que força magnética tão baixa aquele outro tinha? Não conseguia encontrar respostas. Resolveu viver a nova vida que estava dentro de si.
Tempos depois, o Outro regressou, vinha com toda a sombra. Os papeis pareciam invertidos. Chorava, esperneava e logo logo a sombra encontrou o hospedeiro novamente. Murchou como todas as flores quando o sol aquece demais e seca a terra e as pétalas. Mas... mas, nada voltou a ser como antes, apesar de um aparente retrocesso. Apenas um abuso maior estaria para acontecer e seria o final dos meios finais e acabou no grande final! Apenas um ano e meio e a bomba estalou. Essa é outra história e desde então, já se passaram 25 anos.
NãoSouEuéaOutra in '' Histórias Humanas ''