Crónica D´Orelhudos - Luís Novais

Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in , , , , , | Posted on 20:21

PREFÁCIO do Livro:   
Crónica D'orelhudos - Luís Novais
(livro gratuito)

(por Pedro Barroso)


A fábula da gestão difícil é um mito já abordado por todos os autores do mundo.
Aos olhos autocráticos dos maiores, gerir é a arte difícil da conveniência. Da sua conveniência. E aparentemente, conforme defendem, trata-se de um equilíbrio só ao alcance de predestinados, dotados de armas excepcionais de inteligência, poder, sagacidade.
Aparentemente resulta.
Se os profissionais do poder invocarem essa extrema selectividade, ninguém de jeito se candidata a tal árdua e desgastante tarefa. E eles, almas boas, esmoleres e amigas do próximo, nesse caso, e no interesse superior da nação, então sim, se sacrificarão no mais peregrino e último interesse pátrio.
De facto, sempre me pergunto, como homem de dúvidas e desejos de justiça maior, porque raio não vejo nos cargos de decisão… decisores de jeito; gente lúcida, equilibrada, voluntariosa e desprendida, de pensamento livre e julgamento harmonioso.
A resposta é simples.
Esses seres superiores de entendimento abominam as hipocrisias e moléstias do mando e dedicam-se ao crescimento real do Mundo, das Artes e da Vida.
Utilizam o papel do dia para a criação.
Usam o luar das noites para o sonho.
Usam o amor como arma de ternura.
Usam a poesia como acto de suportação do cinzentismo e usam a viagem, a descoberta de civilizações, culturas e pessoas como forma eminente e sempre dialéctica do conhecimento.
Gente do sonho e da paisagem; gente do trato e da descoberta, há muito que aprendeu a ignorar a perfídia dos jogos florentinos.
E, de resto, o poder que ambiciona reside noutra matriz, outra dimensão, outra qualidade.
Até porque governar, - ao contrário do que tanto argumentam os esbirros da prepotência - é um decorrer natural do convívio humano entre gente de bem.
Os mais primitivos formatos descobertos de fórmulas regímentais de vida em sociedade são de facto, por vezes, de uma surpreendente facilidade e decorrência na sua candura e clareza de discurso. São códigos intuitivos na sua decisão moral; são apaziguadores no trato; são corteses no convívio e equilibrados na regulamentação.
Governar no espaço público é sobretudo um acto de atenção e providência.
As sociedades primitivas, apesar da crueza de seus costumes e da rudeza das suas vidas, tinham sentidos de gestão da respublica normalmente claros e precisos.
Havia normas Incontestadas na prática aplicada - fosse ela a transumância dos rebanhos, a gestão dos baldios, o mutualismo ou o forno colectivo da aldeia.
Eram normas de traditio. Mas eram sempre rebatíveis em conselho de cidadãos maiores, caso fosse de bom senso tornar a equacionar o anteriormente decidido.
Tratava-se de conselhos, assembleias de homens bons, senados locais, ou gerúsias, onde se não entrava por truque publicitário ou dispendiosa campanha televisiva, mas sim por mérito próprio, maturidade evidente, sabedoria, ou valor reconhecido.
Fazer crer que estes são processos ultrapassados de gerir, quando muito, velhos e recônditos lugarejos atrasados no tempo, é a velha fórmula de ridicularizar o campo ante a cidade, por falta de progresso e horizonte. Essa sempre foi e será uma falsa questão.
Claro que a oferta na cidade será sempre superior em lojas, produtos, alternativas, oferta cultural, sedução vária. Mas isso não obsta a que no campo se viva com uma qualidade natural,
de espaço e de tempo muito superior. O problema não é de facto, esse.
Estavas tu, linda Inês, posta em sossego, apetece citar.
Eis senão quando uma invasão de colarinhos inteligentes invadiu a nossa vida.
Mas os cavalos de Tróia inseminados de venenos vários, relacionados com a frivolidade e o desmando, não determinam mais felicidade. Fica provado.
E os mais subsequentes e ocultos vapores que de tal organização emana, esses, transformam o poder em cupidez, nepotismo, vaidade, roubo orçamental crónico, volúpia de mandar, abuso e no último lugar da hierarquia, conduzem normalmente a um certo autismo comportamental de etiologia narcísica e difícil erradicação clínica.
Mais que o sistema corrompido complexo e mal-são que se monta, pervertendo a pureza inicial dos agregados humanos, a societas convertida em contributiva, é normalmente governada por um sistema que se convence mesmo da sua infalibilidade, da inteligência imensa de tudo o que implica e decide e esta convencidíssimo de que tem inevitavelmente, toda a razão.
O poder rodeia-se de vários fusíveis de poder, para ser mais distantemente poder, mais impune, mais secreto, mais vigilante, mais informado.
O poder não pode dormir com medo de deixar de ser poder na manhã seguinte.
Para isso instituiu uma teia de regras, mais ou menos kafkiana, de deveres absurdos, papéis em triplicado, instituições e normas complexas, onde o cidadão incauto se perde e transforma, supostamente no seu interesse, mas sem que, estranhamente, isso lhe devolva ou potencie qualquer alegria suplementar de viver.
E o poder isola quem o critica; persegue e mata quem o incomode. Pois não gosta de criatividade, nem de quem lhe questione a proveniência e a implantação.
O poder não gosta de ser interrompido.
O poder não gosta de quem faça perguntas. O poder não quer o sentido crítico.
O poder chega a defender o analfabetismo perante a ameaça do conhecimento.
O poder sofre sempre que se avançam alternativas democráticas, de resolução directa e delegação de autoridade. Mesmo parcelar, regional e inocente.
O poder não atrai os homens verdadeiramente probos, pois esses estão ocupados a construir o mundo da verdade e das ideias.
Luís Novais construiu este fabuloso romance, “Crónica d’Orelhudos”, adoptando um registo maravilhoso de sabor arcaico, extremamente bem escrito e superiormente imaginado, para nos explicar, com pormenor e ironia, os descaminhos da prepotência e da tirania.
Por contraste com os caminhos possíveis da gentileza e do saber.
O sentido político desta obra é fortíssimo e torna-se um libelo de denúncia e indignação cívica.
Assim mais gente houvesse que o entendesse, pois os que o lêem até final, esses, há muito que escolheram o seu campo; e estão, agora mesmo, olhando, espantados, a invasão incrível de burros, incompetentes, incapazes, oportunistas, conflituosos, prolixos, burocratas e simples oportunistas nos degraus vários da nossa hierarquia comandante.
Sítios há em que - desde o porteiro ao Director Geral - o melhor é não transpor aquela porta, nada percorrer de tal edifício, sob pena de severos sentimentos de náusea, cólica urgente, asma repentina, repulsa instintiva, calafrios, simples pudor.
Projectos há em que nos apetece a ignorância para não saber.
Gentes existem que apenas vêm razão de sobreviver impedindo a livre criatividade, o sonho e a diferença aos outros.

Outros ainda que, sempre que vêem algo funcionar bem por si, sem o gasto nem o ónus aparente da raiva e do controle, ficam imediatamente ciosos de intervir, para nos pôr a mesa albardada da conveniência, da corrupção e da intriga, com colarinhos de verniz e camuflagens de amizade.
Os homens probos, esses, são raros; e têm urgentemente de preparar o futuro.
Porque, sem eles, essa tal coisa de Futuro poderá nunca existir decentemente.

Pedro Barroso
Quinta da Raposa, Riachos, Fevereiro 2012

(Source)


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Bichinho Azul, conta p´ra mim quantos dedinhos e buraquinhos contou por aqui?

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