O Alambique Gigante

Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in , | Posted on 09:15


Cadernos Avulsos
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Uma memória incrível, da minha primeira infância, convidou-me a viajar até ao passado. Na casa dos meus desencarnados avós, existia uma adega, um lagar, uma destilaria. Uma das especialidades, era a aguardente de medronho. Gostava de comer os medronhos já amadurecidos, vermelhos vermelhíssimos. Eles se desfaziam na boca, e podia sentir aquela pele verrugosa. Semelhantes às cerejas na sua forma, mas em essência e textura, diametralmente opostas.

Tudo era produzido de forma artesanal. O que mais me fascinava eram os alambiques de cobre, a sua forma. Eram enormes. O fogo contínuo, que às vezes, quando penetrava inadvertidamente naquele espaço, sentia-me dentro de um forno. Acho que é daí que provem a minha paixão, quase emocional com o metal. Questionava-me como se concebera aquela forma do alambique. Tudo aquilo era misterioso, e mais misterioso era a alquimia que se processava...  ver a aguardente a sair do alambique para um barril, era-me surpreendente. 
Como era uma menina criança, e aquela tradição estava destinada aos homens, pouco conversavam comigo. O comportamento natural e generalizado, portanto contínuo era, o de afastarem-me do lagar, da destilaria, da adega. Uma vez, ouvi um grito por parte de uma tia, que não queria a criança, eu, naquele lugar.  Já que alguma coisa podia ocorrer mal. Também, os vapores durante a cozedura, que se espalhavam pela atomosfera tão íntima e secreta, eram essencialmente alcoólicos ou nocivos às vias respiratórias..  Só que eu, sempre, conseguia penetrar nos domínios onde acontecia a tal alquimia. Observava intensamente, absorvia, fotografava o mais que podia do que via, pela não compreensão lógica do que ocorria e pela negação de me explicarem coisas que diziam não pertencer ao mundo das crianças. Eu não podia mesmo lá entrar. Sei que eles passavam às vezes as noites em claro no processo de destilação, depois do processo de fermentação concluído.

Nas serras pertencentes da minha avó, existia muito medronho. Ele era apanhado em grandes quantidades e depois era trazido para ser fermentado e por fim destilado e transformado nos alambiques em aguardente de medronho. O pior de tudo, era o que ficava depois daquele processo. Um fedor impossível. Era atirado para uma espécie de eira em campo aberto. O meu nariz não suportava aquilo, mas gostava do aromatizado da aguardente de medronho.

O aroma, quando cheirava os copos bem pequeninos, despertavam as papilas gustativas. Queria sempre beber e também porque queria ser grande!!! Como os velhotes eram safados, e não havia mulher por perto,  lá me davam e, tinha que me calar. Nunca peguei uma garrafa, sabe lá deus porquê... e nunca tive tendência ao álcool e muito menos beber e apanhar ''uma''. Mas, naquele tempo, de criancinha gostava de beber no copinho pequenino um pedacinho... acho que estava seduzida pelo tamanho do copo... e depois, bebia, e depois abria a boca o mais que podia, arregalava os olhos e colocava todo o ar para fora fazendo barulho como se fosse um dragão a deitar fogo. Aquilo queimava, e sentia o estômago a arder. Gostava de sentir a ardência...

NãoSouEuéaOutra, in '' Memórias, As Nossas, Tão Humanas''

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Bichinho Azul, conta p´ra mim quantos dedinhos e buraquinhos contou por aqui?

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