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Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas, foi publicado com este título e ainda bem (oxalá possa publicá-lo mais vezes) na «Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 4-2-1984[In «Crónica do Planeta terra», «A Capital», 4-2-1984]
A
não violência praticada por
Gandhi e o ódio de classes teorizado por Marx são opostos irredutíveis. Dois proveitos não cabem no mesmo saco. Nem mesmo a tolerância dialéctica yin-yang, aprendida dos taoístas, tolerância que é costume invocar quando se quer misturar a água e o fogo, autoriza a meter estes dois contrários absolutos no mesmo pote.
Só os contrários relativos ou complementares entram no jogo taoísta do Yin-yang . E de pouco serve querer conciliar o Satã contemporâneo, o Anti-Cristo da violência erigida em religião, com o Deus das bem aventuranças salvíficas.
Ainda que - como rezam as Escrituras - o Diabo seja um Anjo caído e um filho de Deus não reconhecido pelo pai.
Para nos safar do beco contemporâneo - cuja única saída é o holocausto nuclear - teremos de reaprender sem dúvida, e rapidamente, a jogar o yin-yang, desportivamente encarar o inimigo como um adversário de ping-pong, Mas a condição prévia dessa iniciação no yin-yang é não invocar o seu santo nome em vão, nem admitir em seu nome tudo quanto o destroi.
SACO DE GATOS
Posto isto, as greves da fome - técnica não violenta - para impor posições violentas de ideologias baseadas no ódio e na luta de classes, que se perpetuaria até à ditadura de uma delas, entram em contradição não dialéctica.
Como travestis se devem encarar, igualmente, os belicismos que dizem defender a paz, a luta de classes que apela ao pacto social, os ecologistas que postulam a revolução por meios violentos e outras oposições irredutíveis que se passeiam calmamente em nome do Tao supremo ou mesmo do supremo Mao, seu herdeiro moderno e que consultava o I-Ching como oráculo nos momentos críticos da governação.
"Sobre a Contradição ", do filósofo Mao Tsé Tung, é um texto de leitura aconselhável e que poderia, se praticado, salvar muitas vidas que a luta de classes continua ceifando. Podia também evitar os espectáculos naturalmente chocantes, os travestis da paz, da liberdade, da vida, estes últimos a defenderem agora, à uma, o aborto como supina moral da indecência e da morte. Macaca.
CONTAGEM DECRESCENTE"A vida e a verdade é que são as verdadeiras forças".
Máximas gandhianas como esta convidam à reviravolta de 180 graus num sistema baseado em princípios antiteticamente e simetricamente opostos.
E suscitam a geral hilariedade, naturalmente. A moral hoje tornou-se ridícula. Só que o espectáculo "is over", com a bomba à vista. Começou a contagem decrescente para a deflagrar na derradeira catástrofe que o homem se permitirá sobre o Planeta Terra.
Aí, os que se riram da pobreza gandhiana e da pobreza franciscana sua ancestra, já só vão rir amarelo. Mas são eles, tefe-tefe, os primeiros a recear o holocausto atómico, a encomendar o abrigo nuclear, a profetizar que mais de metade da humanidade irá para o galheiro à primeira deflagração de mísseis bons. (E a outra metade, chucha no dedo?).
O medinho de morrer, aí, à Gerontocracia contemporânea, já não lhe parece ridículo. Mas os abrigos anti-atómicos, então, o que são? Como verão hoje esses compradores de abrigos as máximas gandhianas da não violência? Perceberão ao menos a estreita relação de causa e efeito?
Os valores morais da não violência (única Ética hoje possível) atrofiam-se e ninguém acredita que o imponderável do espírito tenha peso no meio da truculência e da violência instaladas. À santíssima trindade - liberdade, igualdade e fraternidade - faltou apenas o golpe de asa: a Tolerância dialéctica yin-yang. E falta. Mas até quando, face à contagem decrescente para o abismo?
PACIÊNCIA EVANGÉLICAOs gandhianos, no entanto, insistem com paciência evangélica, em fazer a revolução por dentro. E têm cada vez mais razão quando denunciam o fascismo latente de todas as revoluções feitas por fora.
Sabem que é um longo trabalho de paciência, mas se forem muitos a ajudar... Estamos quase no zero da contagem decrescente, quem se filia na Arca?
"Há outras forças além da força armada - disse-nos Parodi, sucessor de Lanza del Vasto na Comunidade da Arca - a vida é uma força, a união dos homens, o trabalho, a verdade também são forças construtivas. "
E concretiza, como
La Palisse: "
Não se pode construir nada com a força das armas."
Igualmente olhado com um sorriso trocista, que ainda não era amarelo, o jejum praticado por monges budistas, durante a guerra do Vietname, chegava ao Ocidente super-star (através
das endiabradas agências noticiosas) com ar de exotismo execrável.
Quando os violentos guerrilheiros de Esquerda revolucionária adoptaram na Europa (na Irlanda, por exemplo) a "greve da fome" como forma de pressão sobre o Estado - que incarna a excelência fascista em todas as épocas e lugares - as coisas mudaram de figura.
Afinal, jejuar à Gandhi já não era uma mania mística: era uma forma de luta e podia inscrever-se nas alíneas de um caderno reivindicativo, perfeitamente enquadrado na dialéctica da luta de classes.
Quem terá de engolir mais este sapo vivo, quer dizer, mais este paradoxo?
É preciso um espírito aberto e sem preconceitos raciais para olhar as tácticas da luta não violenta sem um riso de comiseração. É preciso saber que estamos a contar para o zero final. É preciso a noção vivida do simples, do pobre e (agora tanto em voga) do "small is beautiful" como valores humanos fundamentais, base de qualquer Declaração de Direitos.
É preciso , em suma, o inverso das ideologias violentas, a Leste ou e a Oeste, fazer stop neste «continuum» ou «perpetum mobile" até ao holocausto final. É preciso, para levar a sério os conselhos tácticos da não violência, acreditar mais na lei da causalidade cármica do que na lei da identidade lógica.
Como escreveu Helena Santos, aliada da Arca em Portugal e tradutora para português da obra de Lanza dal Vasto, "a profecia da ruína futura tem implícito um convite à conversão interior de cada homem (inteligência, coração e corpo) que é a não violência." Outros dirão sinónimos: o Princípio Único, o Tao, o yin-yang.
Esta profecia da ruína planetária, que aproxima os não violentos dos ecologistas, viu-se recentemente adoptada pelos próprios violentos de repente travestidos de pombas evangélicas e pacifistas. Anedota trágica, humor negro.
O TESOURO DOS LAMASEscolas de não violência , as comunidades da Arca espalhadas pelo Mundo preparam os seus aliados para acções de resistência passiva, objecção de consciência, greves da fome (a que eles preferem obviamente chamar jejuns), manifestações silenciosas, sit-ins, enfim, as várias formas que assume o combate ensinado por Gandhi e por ele praticado.
"Aprendizagem é inseparável da prática" - repete Pierre Parodi, herdeiro de Lanza del Vasto na "chefia" espiritual da Comunidade-mãe em França.
Tem de facto muito a ver com os conceitos preservados nos países do Oriente esta aliança indissolúvel da doutrina e da prática. Resta um mistério na história contemporânea a invasão sangrenta que Mao Tse Tung fez do Tibete, queimando e saqueando mosteiros da Ordem Nyingma.
Não está ainda esclarecido se o grande Estadista queria libertar os camponeses tibetanos da miséria, se queria descobrir o tesouro guardado nos subterrâneos do Himalaia, a raiz última da Sabedoria, a pedra filosofal ou, segundo outros, o Santo Graal.
O namoro que recentemente a China e a URSS têm feito ao Dalai Lama, para que ele regresse ao Tibete saqueado, faz pensar que não encontram o tesouro e querem guia.
De facto, esclerosada até aos limites do inverosímil (e agora até aos limites do suportável pelo Ecossistema Terra), a ciência enveredou no Ocidente pelo delírio teórico e, ao perder o centro de gravidade, entrou em órbita da Asneira pelo espaço astral fora. Esta perversão explica muitas , se não todas as perversões dominantes neste tempo-e-mundo (imundo) ocidental.
A unidade tão insistentemente procurada e proclamada por Lanza del Vasto é a démarche aparentemente metafísica para reencontrar o real numa civilização de fantasmas (as teorias, as ideologias, os ismos, os sistemas).
Ao falar de realismo, é às fontes do realismo e da dialéctica yin-yang (taoísmo, Zen, budismo tibetano) que o Ocidente tem de recorrer. Se tiver tempo, dada a contagem decrescente...
Gabriel Marcel atribuía os crematórios nazis ao "espírito de abstracção", hoje transformado em religião - a Tecnocracia.
Quando se perde o fim e os princípios, tudo é possível. Tudo tem sido possível, soando a heresia as máximas não violentas de Gandhi.Um personagem de Dostoievski, com certeza dos irmãos Karamazov, dizia o mesmo aludindo à morte de Deus: "Agora tudo é possível". Tem sido, e foi, até aos crematórios nazis. Mas ainda será?
PLENÁRIOS DE TRABALHADORESDa heresia passamos ao estratosférico.
A democracia que se pratica nas comunidades da Arca, é algo que não se acreditaria neste planeta Terra.
Afirmar que nas comunidades fundadas por Lanza del Vasto, só se tomam decisões por unanimidade, pode parecer um gracejo.
Democracia, nos nossos costumes, é o governo da maioria, em nome da maioria. As minorias metem-se na ratoeira e dá-se-lhes raticida.
O "direito de minoria" é ignorado por essas democracias, por isso também alcunhadas de mediocracias. Embora seja o direito fundamental do homem - ser o que é, pensar o que pensa - , varreu-se dos nossos costumes.
Curioso mas não único paradoxo do sistema em que estamos entalados. O movimento da Arca, embora não o explore demagogicamente, na prática dá uma lição e uma bofetada com luva na fraude institucionalizada das ditaduras da maioria. Uma bofetada não violenta, claro, amigável.
Segundo Pierre Parodi, a verdadeira democracia é a que se pratica nas comunidades da Arca. Mas também reconhece que esta democracia autêntica só é possível num pequeno grupo orientado no mesmo sentido espiritual.
Os cépticos duvidarão mas os não violentos teimam: "Não há autoridade autoritária nas nossas comunidades, todos temos a responsabilidade dos nossos actos."
Se só se tomam decisões por unanimidade, os cépticos constitucionalistas dirão que na Arca não se tomam nunca decisões.
Puro engano. Numa assembleia os discordantes fazem um esforço convergente, no sentido de se aproximarem das outras posições, em vez de se encarniçarem na defesa das próprias posições."
É a dialéctica yin-yang em acção,
o segredo de Polichinelo : "
Cada um não defende a sua própria opinião mas pesquisa a dos outros."
E assim o dom de cada um é oferecido para o bem de todos.
E assim não é o chefe que toma decisões, mas cada um e todos.
Os adeptos da não violência não hesitam em acusar: "Somos uma sociedade de irresponsáveis.'' Salvo seja. E salvo aquele pequeno defeito já citado : temos os minutos contados.
(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas, foi publicado com este título e ainda bem (oxalá possa publicá-lo mais vezes) na «Crónica do Planeta Terra», «A Capital», 4-2-1984