O Perfumista
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Arte , Escrita Criativa , Joaquim Mestre , Romances | Posted on 18:17
Sempre, os livros, vieram ter comigo, por diversas razões que nem tenho vontade de escrever/narrar/contar. Entre os Romances de Patrick Süskind «O Perfume» - livro que caiu-me de uma varanda quando ia a passar (risos) lá no século passado dos anos /inícios 90 - e Fernando Trías de Bes «O Colecionador de Sons e Joaquim Mestre «O Perfumista» existem paralelos insuspeitos. Nunca procurei estes livros. Este último, num dia de arrasar coleópteros - besouros - vi-me qual Lolita hipnotizada; vários minutos se passaram e os olhos cegos na vitrina da Bulhosa Livreiros. Tal a paralisação, que, só balbuciava dentro do cérebro «perfume, perfumista, sons, cheiros e amores e amores e amores e talentos e talentos e génios e...» bem, eu não acordava!! Quando olhei/acordei e bem, já estava com ele na mão e repetia, « onde está o quarto? O quarto livro? Isto é uma viagem... o que é isto?? Não me deixam porquê? É a intensidade? Ou são os livros que me escolhem?»
A verdade, é que comprei-o e sentei-me no carro e devorei. Já nem sabia onde começava eu, onde existia. Tantos pormenores de um Alentejo... e tive vontade de conhecer o autor. Escrever-lhe! Tal a febre de comunicar e agradecer tantos pormenores do livro. Mas quando soube, caiu-me por terra, a alma!! Aí, lembrei, «Tem o livro!! O livro!!! São as palavras, as palavras que dão sentido e nos tecem a alma nos dias de desalento!! Onde nos recuperamos do espectro deste mundo caótico. Remetemos a nós ao ler.»
A Joaquim, fica o agradecimento deste maravilhoso presente... as palavras, aquelas, havia tanto, mas tanto, tempo que não as ouvia!!!
Um trecho, abaixo. Para deliciar!!
(…) O Cego da aldeia do Espírito Santo é o homem que mais sabe de ervas em toda a serra. Ele conta que a erva das três espigas é uma planta milagrosa que já os mouros conheciam e que, no mesmo pé, dá três espigas: centeio, trigo e cevada.
A erva de namorar dá flores brancas e rosadas e floresce na manhã de São João. Com ela fazem-se filtros de amor. O Cego do Espírito Santo conhece as flores pelo tacto e pelo cheiro e dizem que as mulheres não lhe largam a porta por causa dos filtros de amor que ele faz. O Cego também sabe muitas histórias de amor, e outras que não podemos contar…
Segundo ele, há muita gente a viver do negócio do amor. Bruxas, mulheres de virtude, alcoviteiras, viúvas, solteiras, encalhadas, todas vivem do amor. Dão conselhos, receitam mezinhas, fazem filtros, rezas e benzeduras, levam e trazem recados, fazem feitiços, deitam cartas, tudo para prender os corações.
Mas não há ninguém que ensine a amar. Por isso é que o bonequeiro de Beringel representa o amor com uma venda nos olhos. O amor é cego, diz ele. Cego sou eu e sei que o amor não precisa de olhos para ver. Amar aprende-se amando, remata o Cego do Espírito Santo. Cada vez há mais gente a sofrer de mal de amor. Por isso ele não tem mãos a medir. É certo que o cego conhece como ninguém os melhores filtros de amor; é certo que ele é muito sábio e entendido nos segredos dessa doença, mas o que nenhuma mulher que o procure esquece são as suas mãos.
Dizem que é na apalpação que está o segredo para escolher o melhor filtro para cada mulher. E todas recordam as mãos do Cego, na frente de quem se desnudam com o à-vontade de quem sabe que ele não vê. Não vê mas sente, que é uma maneira mais profunda de ver, de ver e imaginar. Ele conhece-as todas pelo corpo e sente na ponta dos dedos o estado de desamor em que elas se encontram.
Há casos perdidos que já não respondem à apalpação e mezinha nenhuma consegue curar, mas a generalidade reage bem ao tratamento. Daí que todas saiam muito contentes da casa do Cego, com um frasquinho na mão. Contentes não sabemos porquê, pois o remédio só faz efeito passados oito dias. Na verdade, há milagres que só um cego pode explicar.
Talvez seja por isso que as consultas são tão demoradas e requerem várias horas de exaustiva e demorada apalpação. Dizem que por essa razão ele nunca casou, mas conhece melhor do que ninguém os corpos e os segredos das mulheres do Espírito Santo e arredores.
Só há um caso que ele nunca conseguiu resolver. Foi o de Adélia Nande, rapariga roliça de seus vinte e oito anos, desenganada de tudo e de todos, sedenta de homem numa terra de mulheres. Para melhor a tratar aconselhou-a a viver em sua casa, para assim a obrigar a seguir os tratamentos à risca. Passados cinco anos ainda o Cego, esperançoso, acredita na cura de Adélia Nande. Ela é que parece que se habitou a estar doente e já não quer outra coisa. Vá lá a gente compreender as mulheres e os cegos. (…)
Trechos do livro ‘’O Perfumista’’ de Joaquim Mestre
Joaquim Mestre nasceu em Trindade, concelho de Beja. Morreu em Lisboa em 2009, aos 54 anos. Licenciado em história pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado em Ciências Documentais pela mesma universidade. Gostava de ler e sonhar, de comer e beber, e amar e viajar. E de escrever, também. Foi autor de um livro de contos O Livro do Esquecimento (2000) e do romance A cega da casa do Boiro (2001). Foi galardoado no ano 2008 pela colectânea de contos «Breviário das Almas» (Oficina do Livro) com o Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, instituído pela Câmara de Santiago do Cacém.
Foi director das revistas Rodapé e Pé de Página.
Foi director da Biblioteca Municipal de Beja.
Foi director da Biblioteca Municipal de Beja.