RECUAR UM PASSO PARA AVANÇAR VINTE

Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in , | Posted on 17:53

RECUAR UM PASSO

PARA AVANÇAR VINTE (*)



In «Futuro», «O Século Ilustrado», Lisboa, 22-5-1971

Supõem alguns que falar do futuro é (apenas) prever, até às últimas consequências, o que vai ser esta civilização tecnológica (à qual por acaso pertencemos e é uma entre muitas das civilizações possíveis) e que nenhuma alternativa se apresenta, portanto, para substituir ou contrariar a lógica onde estamos embarcados, a ordem a que devemos obediência, a estrutura de que somos um mísero e intransponível parafuso. Como parafusos, nada nos pode tirar de onde estamos e há que seguir, na engrenagem, até à consumação dos anos, e - dizem os pessimistas - dos séculos.

Isto é acreditar que a Humanidade se resume à civilização tecnológica, a qual (afirma-se) dominará exclusivamente em todo o universo e por todos os séculos dos séculos vindouros. É acreditar também que nenhuma outra sociedade, diferente, surgiu ou surgirá e que se esta morrer às suas próprias mãos, tudo - através das galáxias - terminará com ela.

Diga-se, no entanto, que uma tal crença é, além de pretensiosa, um tanto ridícula e abusiva. Pois não só está provado que todas as civilizações são mortais (teoria, como se sabe, eruditamente demonstrada por Arnold Toynbee) como virão sempre outras substituir as que morrem (ou suicidam? ). E que, se tudo indica estar a civilização dita ocidental no estertor, a caminho de um apocalipse termonuclear ou de uma asfixia por contaminação da biosfera, ou da loucura colectiva pelo congestionamento de estímulos, dados e signos que bombardeiam as meninges, muito provavelmente e mesmo ao nosso lado já estará a nascer outra civilização para substituir a ilustre moribunda.

Por isso é que se alguns esperam um apocalipse, outros esperam também uma nova Utopia. Se muitos acreditam num Fim, também já há muitos que estão trabalhando para um novo Começo. Se há os que contestam e colocam em questão a civilização herdada, outros estão realizando a reviravolta pacífica para um outro padrão de existência, outro tipo de relações humanas, para uma cultura, enfim, radicalmente diversa da vigente que hoje vigora.

Ao criticar-se a cultura (a sociedade) tal como a temos, pressupõe-se uma contracultura: e avaliar o futuro é ver sempre ambas as faces da moeda. Nesse trabalho de contracorrente, os «descontentes da civilização» como lhes chamou Freud, desempenharam, ao longo dos anos, um papel de síntese e catálise. Houve sempre as ovelhas «ronhosas» que não quiseram ir no rebanho, as individualidades, rebeldes por definição, que preferiram o isolamento incómodo e pagaram geralmente com a insegurança, a doença, o hospital ou o cárcere o seu descontentamento, a sua discordância, a sua não integração participante nos grandes e confortáveis conjuntos.

Tudo indica que a lógica da civilização tecnológica não poderá deter-se, que irá até às suas últimas consequências, que se continuará a depredar e a esgotar a natureza até que esta contenha, matérias primas, fontes de energia e reservas de vida que forneçam as caldeiras da Produção que logo a seguir irão fornecer o consumo delirante.

Mas muitos são os sinais, também, de uma outra sociedade, coabitando com esta, nascida de grupos e movimentos juvenis, disposta a não gastar mais os recursos naturais, a restabelecer o equilíbrio perdido, regressando a um estádio só «aparentemente» primário da história, mas representando real e efectivamente, a mais avançada vanguarda dos que sabem prever para prover. (Prever é a atitude mais científica que há).

Se os excessos do consumo conduzem o presente a hipóteses de futuro bem pouco aliciantes, e várias ameaças estão pendentes sobre o pescoço da passiva Humanidade, é dialecticamente irreversível, imparável, a realidade nascente dos que se opõem à total destruição e pretendem, precisamente, preservar a civilização quando aparentemente a estão negando, contestando, contrariando, pelo regresso a fases ditas não civilizadas do comportamento.

O «regresso à natureza» (que as massas, aliás, já adoptaram em grande escala, pelo consumo de férias no campo e na praia, longe dos conglomerados urbanos), as comunidades rurais, os hábitos alimentares novamente frugais e simples, as relações humanas sem preconceitos e sem erotismo, uma simplificação dos actos vitais da existência e um quotidiano recuperado, são as características de uma juventude a quem o mundo urbano se tornou insuportável e intolerável e a quem o futuro está entregue mas que o recusa reconstruir da mesma e única maneira como até agora as gerações transactas o construíram.

E isto - embora se proclame o contrário - para «in extremis» evitar destruí-lo. Irremediavelmente.



(*) Este texto de Afonso Cautela, 5 estrelas, foi publicado com este título na coluna «Futuro», «O Século Ilustrado», Lisboa, 22-5-1971 

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Bichinho Azul, conta p´ra mim quantos dedinhos e buraquinhos contou por aqui?

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