Lulu it´s mine
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Curtas e Rápidas , Fotografias | Posted on 09:11
« não te beijo a língua, beijo-te os seios. esses que ocultas ao primeiro olhar. essa mulher não inventada, essa que beijo e rasgo os horizontes. »
Vá lá um desenhito... vá lá!!!
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Arte , Desenhos , Fotografias , Ilustração | Posted on 09:07
Men - homem Escultura
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Arte , Escultura , Fotografias | Posted on 21:20
White Aphrodisiac Telephone
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Arte , Dalí , Fotografias , Salvador Dalí | Posted on 20:38
Salvador Dalí
O famoso ''White Aphrodisiac Telephone'' (1936)
Telefone em baquelite, lavagante em madeira pintada.
July, It´s July
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Desejo , Escrita Criativa , JULHO | Posted on 19:10
" – Julho – "
Autora: NãoSouEuéaOutra
Género: Escrita Criativa
(…) “do you ever cry in the middle of the night” – it´s just a song, a song of love… Tu conheces essa canção? É uma canção que a minha boca canta. Canta tão bem, esta tão enternecida lágrima veranil, como um cisne pousado silenciosamente sobre a superfície da água!
“it´s july… do you remember??”.
“in the middle of the night”, caminho e canto esta canção de Julho. Talvez, canto a Júlio. Mas, não conheço Júlio e nem Júlios e muito menos os júbilos de Júlio, se é que ele os têm; no entanto sei deste Julho. Este Julho dentro do Verão, encantado de fogo que nunca se acaba por si só! É talvez, o mais acompanhado!! É um jovem e, é tão diferente do amadurecido Agosto! Sim, Agosto é Tertúlia Melancólica na verdade e, dura três dias. Rápido como o Carnaval, como uma Estrela cadente. Não sabe o que são trinta dias e mais um, ele ama estar na onda da Glória, como o seu conterrâneo, o Julho. Apressa-se a vivê-lo, fechando os olhos.
Julho nunca pensa naquele mais um; está na pujança total do seu esplendor. Apesar da história dos homens narrarem outra história destes trinta e um dias destes dois meses. Ladra a história, que se deve aos Imperadores Romanos, entre eles um tal de Júlio César. Mas eu não quero saber; quero saber deste Julho arrebatado, entranhado e vivificante. Este jovem quase imberbe.
“it´s July – all right – in the middle of the night”, diz a canção e, Julho sopra toda a sua coroa de ouro, recentemente adquirida. É o tempo em que as estrelas voltam a ser terrenas, e Julho está ali de boca toda aberta e a língua para sorvê-las. É quando o amor está mais próximo dos homens e os deuses destes, também.
Talvez seja, também, o Senhor das Onças, este Julho. Mas também o é de Maria Madalena, a Penitente, aquela que levou a boa nova aos apóstolos, a Ressurreição. A Prostituta. A Amante de Jesus.
Julho dos setes, esse sete místico, coração do homem em frente à felicidade e à perfeição, e, cuja mão não consegue igualar ao Deus que fez toda a criação. Deus, esse Omnipotente, omnisciente Ser, na ânsia de criar toda a criação em sete dias, acabou gerando os famosos sete pecados, e não é de admirar que exista a tão famosíssima e aclamada “ A Divina Comédia” de Dante. Por isso, Julho é tão intenso e, rola loucamente e completamente solteiro, depois de ter recebido a coroa da sua mãe Primavera…ele promete uma farta Libido, exalta os sabores da carne, aromatiza os sentidos... (…)
Bem… Vou indo… indo… é Julho… Julho a chamar e eu cantando “in the middle of the night”… são os temperos da cozinha de Julho… Nem sei se rio, se choro; se fico ou se vou… No fim só me resta dizer: será que renascerei?? Por isso, fico-me com esta: “ Love, Tu”… Não precisa de nome!
A propósito, até este post tem o número sete, ora some-se os seus números.
2 de julho de 2008
e hoje, é dia 22 de Julho de 2012 (coincidência de números??)
What´s about Life and Live
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Poesia , Poesia Maldita | Posted on 18:47
Ao Norte da Morte
«Demanda na vida… Vence quem esquece»
NãoSouEuéaOutro
«Fora do sítio, fora do Tempo, fora do espaço, fora da Morte
Além dum Norte
Ao qual lhe deixei o seu forte magnetismo
Que melhor dá a outras agulhas
Que melhor fazem melhor em guiar marinheiros trafulhas
Marinheiros ainda mais gitanos
Que os próprios Ciganos
Daqueles Ciganos das estórias
Que os coloca ao Norte do Mar da Roma
E ainda mais adiante que o poente do Poente
Num Ocidente lavrado
Por um Sol decadente
Cadente, que se soma dias e dias
Ciganos sem bússula ou agulhas
Sem Norte mas com faro
Um faro apurado que me empresta o
Levante Sonhado, desejado, e negado, odiado
Reflexo duma vida à espera da Morte
Onde minha bússula nunca aponta p’ra Norte
Fora do sítio, fora do Tempo, fora do espaço, mas dentro da Morte
Por uma vida de sorte…
"Mereço isso ?" pergunto me eu
"Mereço viver morto à nascença ?"
Mas a cada vista e parecença
Sei que mereço talvez
Uma morte indigna
Talvez por uma vida indigna
Onde cacei D. Mercúrio
Sem saber saber o Saber
E morrer em vez de viver…
Talvez, talvez, talvez sejamos apenas Guarda-Livros do Rei
Envoltos em sonhos mas agarrados à Lei
Presos à questão "Será que eu sei ?"
E talvez, talvez, talvez seja a Vida
Quem fez a Morte sem Norte
Para libertar os Livros dos Guardas
Mumificados em fardas Faraós da Mentira…
No final, todos nos salvaremos
Por intuir que morreremos…»
31 de julho de 2007
OS ESPARTANOS
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Guerras , História; Historiografia , Investigação | Posted on 18:40
(ESPARTANOS) E Tan E Epi Tas – “Com o meu escudo ou sobre ele”
OS ESPARTANOS - “A lança deles era forte, a música deles era suave, entre eles a justiça tinha um lugar honrado”
“Este é o meu escudo.
Em combate, eu o levo à minha frente,
mas ele não é só meu.
Protege o meu irmão à minha esquerda.
Protege minha cidade.
Nunca deixarei meu irmão
fora de sua proteção
nem minha cidade sem o seu resguardo.
Morrerei com o meu escudo em minha frente
enfrentando o inimigo.”
E Tan E Epi Tas – “Com o meu escudo ou sobre ele”
Ao se tratar do tema Cultura Marcial, é impossível prescindir de falar de Esparta e dos espartanos. Homens valentes que nunca perguntavam quantos eram o inimigo, mas somente, onde estavam. O termo espartano se tornou ao longo do tempo sinônimo de bravura, de disciplina e de guerreiro.
Esparta foi uma cidade-estado situada no Peloponeso, Grécia. Ao contrário de suas irmãs helenas, que ostentavam grandes edifícios, monumentos, estátuas, escritos e filósofos, Esparta tinha para oferecer apenas espartanos e o seu ideal de vida, um ideal de bravura, de honra e de valor.
Mesmo nunca tendo ultrapassado os 50.000 habitantes, dos quais apenas 8.000 considerados verdadeiros espartanos, essa cidade conseguiu sustentar durante séculos a hegemonia na Hélade, graças à determinação de seus homens e mulheres. Dizia-se que o seu sucesso bélico se devia menos ao fato de serem melhores guerreiros do que os demais gregos do que a estarem mais acostumados a suportar os dissabores da guerra. Onde a psiquê de outros homens se desmantelava a dos espartanos se regozijava.
Grande parte do que chega aos dias atuais da história sobre os guerreiros espartanos é por meio de contos sobre seu estilo de vida e seus feitos heróicos, que muitas vezes chegam a parecer sobre-humanos, quando analisados pelo prisma da civilização atual. O que muitas vezes escapa nas narrativas dos historiadores antigos e modernos são os motores que permitiram aos espartanos levar essa forma de vida.
Os reis de Esparta diziam-se descendentes diretos de Herácles e sempre governavam aos pares. Havia um rei para a paz, que cuidava dos assuntos políticos e administrativos do Estado, e um rei para a guerra, que liderava as constantes campanhas militares da cidade.
A atividade dos reis era controlada por cinco magistrados, denominados “Éforos”, a respeito dos quais as informações são parcas, sabendo-se apenas que eram iniciados e que conduziram o processo de formação de Esparta.
No processo de transição entre a Esparta que era uma cidade grega como outra qualquer, que se observa nos relatos sobre a guerra de Tróia e seu rei espartano Menelau, marido de Helena, e a Esparta de Leônidas, que ficou conhecida, dentre outros episódios, pelo dos Trezentos e as Termópilas, houve um rei que teve papel preponderante: Licurgo (Likurgus).
LICURGO (O ESPANTA LOBOS)
A característica bélica e disciplinada de Esparta não surgiu aleatoriamente. Até chegar a toda a sua potência, os povos da Lacônia — região da península do Peloponeso — eram organizados em tribos e coligações e começaram a adquirir as características de um povo coeso depois das migrações Dóricas do séc. IX a.C.
Nesse contexto, os reinados e as sucessões eram muito conturbados, e a luta pelo poder era constante. Foi nesse momento histórico que nasceu Licurgo, figura-chave da história espartana. Conta-se que Licurgo era um líder nato que se tornou dirigente na figura de regente no reinado de seu sobrinho, que não tinha idade suficiente para assumir o trono.
Segundo Plutarco, depois que seu sobrinho adquiriu idade para reinar, o povo clamou por Licurgo, pedindo que este não deixasse o poder. Incomodado com a situação que entendia ser pouco ética, deixou o poder para seu sobrinho e foi para Delphos consultar o deus Apolo. Pediu ao deus permissão para formar uma constituição digna de seu povo, tendo obtido resposta favorável. Licurgo então viajou por várias partes do mundo, coletando informação sobre os diversos povos da época e, depois de muitos anos, retornou a Delphos pronto para implantar novas medidas junto a seu povo.
Pediu novamente conselhos ao Deus, que lhe deu as indicações necessárias para cumprir seu intento. Retornou a Esparta e lá foi aclamado por seu povo. Em conjunto com alguns ilustres cidadãos, formulou as famosas “leis de Licurgo”, colocando-as em vigência e se preocupando mais com a aplicação da mentalidade de união e vivência das virtudes do que com as leis propriamente ditas, o que, segundo Plutarco e outros cronistas, foi o grande segredo de seu sucesso.
Foi então reformulada a cúpula do Estado, criando-se então o senado (gerusia), composto por 28 membros ilustres acima de 60 anos e os dois reis, e a assembléia do povo (apella). Na assembléia, somente os reis e os senadores podiam propor medidas. Para regular esse poder havia um colegiado de cinco éforos, com a função de observar e manter o poder dos reis e senadores dentro da mentalidade espartana. A palavra éforo vem do vocábulo “ephoriuo” que significa “supervisionar”.
A segunda reforma de Licurgo foi a partilha de terras. O país era um patrimônio comum, e as terras eram divididas igualmente sendo a luta pelas posses banida, e a busca da virtude o único objetivo restante.
Em seguida, aboliu as moedas de ouro e prata e instituiu as de ferro, atribuindo-lhes um valor insignificante em relação ao peso, de tal maneira que uma quantia considerável significava um peso absurdo de se carregar. O aço das moedas deveria ser de tal maneira isento de valor real que, assim que rubro, Licurgo mandava que fosse temperado no vinagre, tornando-o quebradiço e impossível de ser trabalhado.
Como a moeda não tinha valor entre os outros gregos, aos poucos o interesse dos estrangeiros nos negócios de Esparta e dos espartanos foi desaparecendo, da mesma forma que o dos espartanos em adquirir objetos no estrangeiro. Ninguém que visasse a dinheiro, a enriquecimento pessoal ou a vantagem para si passava perto da Lacedemônia.
Para acabar de vez com o luxo, Licurgo fez a terceira reforma. Estipulou que os cidadãos deveriam se reunir para compartilhar o pão e o bocado que lhes foi instituído por lei e assim estipulou as refeições em comum (Syssitias). Foi-lhes proibido comer em casa, o que descaracterizou a necessidade de acumular bens, já que ninguém iria vê-los. Também com essa reforma, comer de menos ou demais passou a ser notado por todos, que acabariam censurando o cidadão que estivesse cedendo aos ditames do corpo.
Para finalizar suas reformas, Licurgo se recusou a escrever suas leis, argumentando que só teriam valor se estivessem bem incorporadas no costume do povo pelo exercício continuado, devendo ser consideradas mais como uma tradição do que como uma legislação. As pessoas deveriam buscar suas leis, não estas determinar o que as pessoas são. Essas leis, segundo Licurgo, seriam despertadas no jovem através da educação.
A educação, segundo Licurgo, é a mais bela e importante tarefa do legislador. Dentro do Estado espartano, a formação guerreira sempre teve papel de destaque. Pensando no bem do Estado, estipulou que os filhos dos espartanos não lhes pertenciam, mas sim ao Estado, essa mentalidade, por mais que aos olhos modernos possa parecer um tanto estranha, gerou uma mentalidade de união tão grande, que um espartano se considerava ao mesmo tempo pai, filho e irmão de todos.
Tal mentalidade deu à formação espartana uma conotação bem peculiar, pois cada indivíduo não visando à sua sobrevivência, mas sim à sobrevivência do Estado, deixava o melhor de si para o futuro, o que era o ideal de todo o cidadão espartano.
PHOBOLOGIA
Os espartanos talvez tenham sido os maiores, dentre todos os povos guerreiros, no estudo, na compreensão e no domínio do medo. Faziam disso uma ciência, denominada phobologia e desenvolviam técnicas e treinamentos específicos para trabalhar com o medo, tanto no que se refere a dominar o seu medo e não ser por ele dominado, quanto a infundir o terror no inimigo.
A Ciência do Medo
Em qualquer conflito físico, especialmente dentro de uma batalha, é indiscutível a presença de Phobos, o medo, Sabe-se hoje, pelos estudos da psicologia moderna, que o medo é um mecanismo de defesa do ser humano que permite, através da liberação de hormônios como a adrenalina, uma melhor resposta do corpo ante qualquer ação que atente contra a sua integridade. É, portanto, um mecanismo de preservação da vida.
Porém, também é a porta de entrada para o pânico, que paralisa as funções do corpo, levando-o à morte. O pânico é o contrário do medo e aparece quando este não é dominado, da mesma forma que uma simples gripe evolui para uma pneumonia se não tratada adequadamente.
Já possuindo esses conhecimentos em sua época, os espartanos eram especialistas no estudo do medo, a Phobologia, segundo eles. O quotidiano de Esparta já trabalhava constantemente com o controle do medo, havendo inclusive leis nesse sentido, por exemplo, dentre tantas outras: proibição de lamparinas e tochas durante a noite para iluminar os caminhos. Os espartanos deviam retornar a suas casas no escuro desde pequenos, ao sair de suas aulas nas syssitias. Ou a determinação de se enterrar os mortos perto dos templos para que a visão da morte fosse algo natural para os jovens.
Um dos pontos principais da phobologia espartana era o constante contato com o medo para que quando ele aparecesse, não fosse algo estranho e desconhecido. Por isso, os treinamentos e punições na formação de Esparta eram de uma rigidez impressionante.
Contavam que o medo podia ser um poderoso aliado, já que os inimigos também o sentiam. Por isso, a estrutura cerrada da falange espartana, a panoplia — denominação de seu equipamento de guerra — e a organização espartana tinham a função de infundir o medo no oponente.
Um dos princípios da phobologia era o de retirar de si o medo. Para isso, eram incentivados dois aspectos importantes da formação espartana: os cantos, que incitando a coragem e os grandes feitos enchiam o coração dos guerreiros de glória pela busca da honra; e o bom humor, cultivado em todos os momentos da vida espartana sendo o melhor método para combater o medo. Por isso a prática da mortificação era tão importante na formação dos jovens, já que estes só passavam na prova quando mostravam que o humor podia vencer as tendências instintivas. A arte dos cantos, do humor e o conhecimento de técnicas de respirações eram os pilares da Tetrathesis, os ensinamentos da aphobia.
Dentro da phobologia existem três formas de atuar apesar do medo, sendo estas a porta de entrada, em seus devidos graus, para andreia, a coragem guerreira, que nada mais é que o caminho para a extinção do medo, que só é possível com a presença de seu contrário, ponto culminante da filosofia guerreira espartana.
O primeiro patamar da luta contra o medo é o “agir apesar do medo”. Contam algumas crônicas de guerra que, quando um guerreiro se vê obrigado a lutar pela própria vida em meio à visão constante da morte ao seu redor e das atrocidades da batalha, entra num estado de amortecimento mental chamado pelos espartanos de katalepsis ou possessão. Nesse estado, o guerreiro age unicamente por instinto ou por pânico, sem inteligência ou prudência, simplesmente luta sem recear qualquer conseqüência, é a conhecida “loucura da guerra” a que se referem os cronistas das guerras modernas. No estado de katalepsis, o guerreiro podia realizar grandes feitos, mas nunca eram reconhecidos por coragem e valentia, pois aquele estado é próprio dos animais encurralados que, sem ter qualquer alternativa, se lançam ao combate por mero instinto de sobrevivência. Em Esparta esse estado era criticado e não louvado.
O segundo patamar da phobologia é o “vencer o medo”. Devido à forma de vida dos espartanos e da eterna busca pela virtude de que Licurgo incumbiu seus cidadãos, o medo de desonrar seus pais, seus familiares, seus amigos, e a si mesmos e sua cidade era mais incisivo do que o medo da morte na guerra. Por isso, há muitos relatos de guerreiros que preferiam morrer em combate ao invés de retornar à pátria subjugados pelo adversário. Por mais que esse agir seja mais nobre do que a katalepsis, já que nele se encontra uma racionalização e não um mero instinto, ainda assim é agir por medo e não pode ser confundido com andreia, a virtude guerreira por excelência, que gera condições para suprimir o medo.
O terceiro patamar da phobologia, diferente do agir por medo da desonra é o “agir por cobiça de glória”. Por ser uma atitude mais nobre e mais adequada aos padrões de comportamento humano, era muito louvada em Esparta por estar muito mais perto de andreia do que as anteriores, manifestando-se em atos de bravura incomuns, nos indivíduos que conseguiam desenvolver esse patamar. Segundo os relatos históricos, era esse o espírito presente nos ganhadores olímpicos, que tinham como recompensa o privilégio de lutar ao lado do rei como seu protetor. Plutarco conta que um comerciante quis oferecer riquezas a um espartano que ganhara o concurso olímpico, e este recusou sua oferta; indignado, o comerciante lhe perguntou o porquê de tanto esforço, já que não haveria recompensa, e o espartano respondeu que sua única recompensa seria lutar ao lado do rei!
Por mais que essa mentalidade coloque os guerreiros num grau de bravura sobre-humano e lhes possibilite desenvolver feitos memoráveis, a cobiça por glória ainda é um ato egoísta e não pode ser própria dos Deuses. Já que phobos — o medo — sendo próprio do mundo da matéria nasce da carne, tendo o corpo como sua fábrica, a aphobia — o destemor — é própria do divino e tem na virtude seu nascimento. O guerreiro que desenvolvesse essa mentalidade era coberto de honras, pois desenvolvia no mundo concreto uma característica divina, sendo esse o principio para se denominar uma pessoa como semi-Deus.
As tradições indicam que a essência da virtude guerreira está no feminino, sendo justamente o feminino que impulsiona os atos nobres, em todas as tradições. Isso pode ser claramente observado nos contos antigos, medievais e contemporâneos, assim como no próprio gênero das palavras utilizadas pelos espartanos para denominar a coragem guerreira: andreia, e o destemor: aphobia, enquanto denominavam de forma masculina o medo: phobos, e o temor: tromos.
Para um espartano o exemplo dessa bravura superior estava justamente na figura feminina de suas mães e esposas, pois nada mais natural ao feminino que proteger sua prole. Era muito marcante para os guerreiros espartanos verem suas mães, esposas e filhas os observarem a caminho da morte e permanecerem impassíveis, subjugando seus instintos e doando o que tinham de mais precioso para algo maior, o Estado.
É justamente nesse ponto que surge o quarto e último patamar que leva à aphobia: “o domínio”. É justamente quando se consegue calar os instintos e tendências que se expressa o que existe de melhor em cada um. Esse domínio, projetado no combate, coloca o guerreiro num patamar superior ao comum. Nesse estado, ele domina todas as reações de seu corpo de forma inteligente e não sofre com as influências do combate, entrando em contato com andreia, pois nada há de egoísta em seus atos já que nada do que faz se reflete em si mesmo. Esse estado só pode ser alcançado quando as ações são direcionadas a algo maior, a um ideal que, por ser transcendente e arquetípico, é próprio do divino, sendo o ponto de contato do guerreiro com os Deuses.
Esse é o ponto máximo do guerreiro, quando ele age não por si, mas por algo maior, sem se preocupar consigo mesmo. Esse estado só pode ser vivenciado quando está presente no íntimo do guerreiro um amor profundo por seu ideal, e é justamente o amor, para os espartanos, o contrário do medo, o ponto mais alto e mais cheio de glória a que um ser humano pode chegar através da doutrina da guerra, simbolizado na mitologia pela união íntima de Afrodite, o amor, com Ares, a guerra. Somente o amor pode vencer o medo. Portanto, aquele que luta, ao mesmo tempo, nutre grande amor por todos que estão ao seu lado, inclusive por seu inimigo.
Talvez seja por esse amor que os espartanos tenham realizado os feitos heróicos que realizaram. Talvez seja por isso que quanto mais se conhece desses nobres guerreiros, mais eles fascínio exercem. E, certamente, é por esse amor ao seu ideal de coragem e de virtude que a civilização Grega foi protegida veementemente tantas vezes por seus cidadãos, proporcionando que o mundo moderno seja como é hoje.
Treinamentos e técnicas
Dentro da phobologia dos espartanos, várias técnicas eram treinadas para controlar o seu medo e empregadas para infundir medo nos adversários. Uma delas era polir à exaustão seus escudos, elmos e as pontas das lanças, que mediam trinta centímetros. Ao longe, as armas dos espartanos, polidas como espelhos, refletiam o sol de maneira cintilante, dando a impressão ao inimigo que sua formação era composta mais de bronze e ferro do que de homens.
Era visível a diferença entre a formação de outros exércitos e a dos espartanos. Enquanto aquelas pareciam ouriços, com as lanças trêmulas chegando a tocar-se, reproduzindo de forma amplificada o som dos próprios dentes dos soldados, que batiam de medo, o tremor das plumas dos elmos encarregava-se de conferir um aspecto visual ao medo. Dentre os espartanos, viam-se lanças perfeitamente alinhadas na posição vertical, imóveis, denotando a segurança de quem iria destruir o inimigo, o que só fazia causar neste medo profundo. Inclusive a posição das lanças espartanas guardava um significado: quando estavam em guerra, deixavam as lanças para cima, ao passo em que quando estavam em paz, as lanças apontavam para baixo.
Sobre os elmos dos espartanos, havia uma altiva crista de crina de cavalo, que tinha por objetivo dar a impressão de uma estatura mais elevada e intimidadora do que a que tinham e ainda lhes conferia um aspecto de terror difícil de ser transmitido em palavras.
Também o desenho dos seus elmos fazia parte desse teatro de horror. As fendas para os olhos, que não permitiam que estes fossem vistos, com a proteção nasal de bronze da largura de um dedo e as largas maçãs do rosto, lhes davam o aspecto de uma falange de autômatos, de criaturas desalmadas, vindas diretamente do inferno, do Hades, para disseminar a morte de forma impiedosa. Seres indestrutíveis e impávidos que cairiam sobre o inimigo para dizimá-lo cruelmente.
Para o controle do seu próprio medo, os espartanos desenvolveram técnicas de treinamento, compreendendo vinte e oito exercícios, cada um deles focando um nexo do sistema nervoso. Os cinco nexos primários são os joelhos e jarretes, pulmões e coração, a genitália e intestinos, a parte inferior das costas, e a área dos ombros, sobretudo os músculos trapézios, que unem a articulação do ombro ao pescoço.
Um treinamento específico para isso era bater com um ramo de oliveira no rosto do soldado, até que seus músculos da face, dos ombros e trapézios não mais se contraíssem involuntariamente. Também se tocavam os pontos ao redor dos olhos, região que concentra mais medo em todo o corpo humano, tendo o reflexo defensivo mais alerta para proteger a visão. Esses reflexos deviam ser descondicionados, para que, numa atitude consciente, o soldado espartano não mais reagisse e nem sequer piscasse diante de um golpe.
Outra técnica bastante utilizada na Lacedemônia para o domínio do medo era o canto, pois que diretamente relacionado ao coração (onde reside a coragem) e aos pulmões (que vão permitir o controle da respiração). Os guerreiros lacedemônios sempre cantavam ao avançar para o combate, pois assim abriam a garganta e engoliam o ar, de modo a ativar os pulmões até os acumuladores cederem e romperem a constrição do medo. Além disso, a tranqüilidade que transpareciam ao cantar diante da morte também servia para atemorizar o inimigo.
Com todo o treinamento de phobologia, o guerreiro espartano buscava atingir um estado de “harmonia interna” (esoterike harmonia), uma serenidade atingida por quem abriu mão de tudo que é supérfluo em seu espírito, até vibrar no timbre exclusivo que o seu daimon determina. Essa era a suprema personificação da virtude andreia, mais valorizada que a própria bravura em combate.
Também havia a busca de uma harmonia externa (exoterike harmonia), que era um estado de união com os companheiros, como um coro de vozes, no seu musical. Na batalha, essa harmonia guiava a falange em seus movimentos e ataques como se fosse um único organismo, com uma única mente e vontade.
O bom humor também era considerado um aspecto muito importante no domínio do medo. Por isso, havia um treinamento denominado “mortificação” (arosis), que consistia em um dos Pares, nas cantinas, escolher um dos jovens e insultá-lo oralmente da maneira mais severa e impiedosa, ou mesmo impor-lhe surras físicas, com o propósito de disciplinar os sentidos para fortalecer a vontade contra a reação com raiva e medo, as forças gêmeas desvirilizadoras, que compreendem o estado chamado katalepsis, “possessão”. A resposta buscada é o humor. O jovem em treinamento tinha que conseguir chegar a rir na cara do seu ofensor, pois uma mente que consegue manter sua leveza não se desintegrará na guerra.
Há dois episódios que ilustram bem a importância da obediência e da necessidade de manter a coragem do início ao fim de uma batalha. Certa feita, durante uma luta assaz renhida, quando todas as armas já haviam sido postas de lado e um espartano estava em luta corporal com seu inimigo, passou a morder a perna deste. O inimigo se revoltou: “Espartano! O que você está fazendo mordendo minha perna?! Parece uma mulherzinha! O espartano respondeu, sem perder a pose: “Mulherzinha não! Leão!”. Pouco importava a condição em que já estivesse, a coragem e a postura de guerreiro tinham de ser mantidas. Em outra oportunidade, um espartano já havia dominado seu oponente e se preparava para concluí-lo com o último golpe de espada, quando soou o toque de cessar e reagrupar. O espartano conteve o golpe e não matou aquele inimigo, que estranhou: “Espartano, você não vai me matar?”, a que o espartano respondeu: “Só há uma coisa melhor do que matar um inimigo: é obedecer ao meu strategos”. Esse sentido de obediência irrestrita e de controle de suas próprias ações mesmo em condição extremas foi uma das mais importantes chaves do sucesso bélico de Esparta.
Na cerimônia em que um guerreiro espartano recebia seu escudo, muitas vezes das mãos de sua própria esposa, ouvia as cinco palavras que estão na epígrafe deste texto e devia lembrá-las sempre: “E Tan E Epi Tas” (volte vitorioso com este escudo, ou morto sobre ele). Dentre todas as armas de um guerreiro espartano, o escudo era considerado a mais importante e sagrada, porque tinha por objetivo não defender aquele que o portava, mas sim o companheiro que estava ao seu lado, a linha espartana, e assim, simbolicamente, toda a cidade. O espartano podia, em meio a uma batalha, deixar cair sua lança, sua espada, seu elmo ou mesmo seu peitoral, mas jamais o seu escudo, o que era punido com a morte.
O escudo devia ficar sempre levantado, com a manga do antebraço e o punho preparados. Se um guerreiro ficasse em pé em descanso, seu escudo devia ficar escorado em seus joelhos. Se ele se sentasse ou se deitasse, devia deixar o escudo erguido na base de tripé, um tripé leve que todos levavam na concavidade do seu manto.
Esse sentido de unidade das linhas espartanas e de todo o seu exército tinha grande importância para o seu sucesso na guerra. Compreendiam que ser corajoso quando isolado era uma dádiva apenas dos deuses e heróis. Para os homens mortais, havia apenas um modo de reunir coragem: nas fileiras, com seus irmãos de armas, como parte de sua cidade. Um homem só, sem cidade, era digno apenas de dó, sem os deuses de sua terra e sem a sua polis. Um homem sem uma cidade não é um homem, é um fantasma sem identidade, a vagar perdido sobre a terra.
Dentro desses códigos de guerra, também era proibido ao espartano, sob qualquer circunstância, voltar as costas para seu inimigo. Há relatos sobre uma mãe espartana que matou o filho quando viu que este voltara com um ferimento nas costas.
À parte a formação da mentalidade guerreira cultivada pelos espartanos, também havia treinamentos específicos para diversas situações. No exercício chamado “carvalho”, alguns defensores se posicionavam ao longo de uma série de carvalhos, com escudos de vime da extensão do corpo firmados sobre a terra, e as tropas de choque faziam carga. Os defensores tinham a sensação de ser atingidos por uma parede de pedra, os joelhos dobravam-se como árvores novas, toda a coragem os abandonava; era uma sensação de morte por esmagamento. Em compensação, numa batalha real, ninguém suportava melhor do que os espartanos uma carga de infantaria.
Havia outro exercício que tinha por objetivo uma antecipação da ação noturna, feito na escuridão total, com o propósito primordial de treinamento para pisar firme, para orientação pelo tato no interior da falange e para a ação sem visão, particularmente sobre um solo irregular. Os espartanos acreditavam que um exército devia ser capaz de alinhar as tropas e manobrar tão habilmente não enxergando quanto com visão, pois, na poeira e terror do embate inicial da batalha, e a conseqüente desordem terrível, nenhum homem conseguia ver além de um metro e meio em qualquer direção, nem ouvir sua própria voz, quanto mais a de seu comandante. Assim sendo, era primordial para vencer uma batalha manter a unidade e a organização em meio ao caos, o que poucos exércitos logravam fazer, dando-lhes grande vantagem no primeiro choque das fileiras de infantaria.
Para muitas pessoas, inclusive outros povos helenos da mesma época, havia a idéia equivocada de que o treinamento militar lacedemônio era extremamente brutal. Deve-se ter em conta que aquela disciplina fazia parte da sua cultura, e estavam habituados a isso desde o berço. Ademais, todo o seu rigoroso treinamento era temperado de muito humor, chegando a uma hilaridade implacável durante os exercícios, que de outra forma seriam estafantes. Os homens faziam piadas desde o toque da alvorada até a hora do encerramento. Mesmo já deitados para descansar, podiam-se ouvir, por minutos, bate-papos em sussurro e risadas vigorosas pelos cantos do campo, até que o sono chegasse para livrá-los da estafa de um dia de treinamento ou de batalha.
Esse humor peculiar dos soldados era gerado pela experiência da penúria compartilhada. Se se perguntasse para um soldado espartano num acampamento de campanha qual a diferença entre ele e um rei espartano, ele certamente responderia que era que o Rei dormia naquela fossa ali adiante, enquanto ele soldado dormia nesta aqui.
Havia, no entanto, situações de treinamento que tinham por objetivo levar o soldado para além do ponto de humor, como no já citado treinamento das oito noites. É quando as piadas cessam, que as verdadeiras lições são aprendidas e que cada homem e o regimento como um todo faz aqueles avanços mágicos, que culminam na provação definitiva. O rigor dos exercícios objetivava mais endurecer a mente do que fortalecer o corpo. Os espartanos diziam que qualquer exército pode vencer enquanto ainda tiver suas pernas no lugar; o verdadeiro teste acontece quando toda a força se esvaiu, e os homens têm de conquistar a vitória sem o corpo.
Os espartanos viam a guerra como trabalho e não mistério. Por isso, ao contrário de outros generais, os strategos espartanos não faziam discursos inflamados antes das batalhas, com o intuito de provocar um estado mental de falsa coragem, que sabiam desapareceria tão logo perdessem o contato visual com o rei e sua energia revigorante. O Rei dava aos generais instruções práticas, prescrevendo atitudes que poderiam ser tomadas fisicamente, com efeitos concretos e imediatos.
Que sempre cuidassem da aparência, mantendo o cabelo, mãos e pés limpos. Que comessem, se houvesse algo para comer, dormissem ou fingissem dormir. E jamais deixassem seus homens os verem inquietos. Se chegassem más notícias, deviam ser transmitidas primeiro àqueles de patente superior, nunca diretamente aos homens. Que instruíssem os escudeiros a polir o escudo (aspis) de cada homem até brilhar o máximo possível, pois a visão dos escudos cintilando como espelhos infundiria terror no inimigo. Que deixassem tempo para os homens afiarem suas lanças, pois aquele que afia seu aço, afia sua coragem.
TERMÓPILAS
Um capítulo importante e emblemático da história dos espartanos foi a batalha das Termópilas, que teve lugar quando o rei Xerxes da Pérsia invadiu a Hélade (Grécia) com um exército de mais de um milhão de homens. A marcha veio do norte pela Tessália e teria que necessariamente passar pelo estreito desfiladeiro das Termópilas para ganhar a península do Peloponeso e destruir as principais cidades gregas.
As cidades, principalmente Esparta e Atenas, que rivalizavam pela hegemonia entre os povos gregos, se uniram contra o inimigo comum. Coube aos espartanos, juntamente com alguns aliados de outras cidades, a defesa desse local, com o intuito de reter o máximo possível o avanço do gigantesco exército persa, dando tempo aos gregos de se organizar para uma defesa mais eficiente.
Os gregos aliados reuniram cerca de cinco mil homens e aguardavam ansiosamente a chegada dos reforços espartanos, a quem caberia o comando dessa campanha. Surpreenderam-se quando o rei Leônidas chegou acompanhado de apenas trezentos soldados. Alguns questionaram, afirmando que eram poucos, ao que Leônidas respondeu que eram trezentos guerreiros, ao passo que aqueles aliados que estavam diante dele eram camponeses, alfaiates ou arquitetos, estando portanto, em termos de guerreiros, os espartanos em maioria.
Na verdade, Leônidas havia prometido reforços aos aliados em Atenas, mas o senado de Esparta recusava-se a deliberar a aprovação de um contingente antes do término das festas cívicas na Lacedemônia, período em que o senado não deliberava. Ciente da urgência da situação e da palavra empenhada, Leônidas reuniu sua guarda pessoal, dos trezentos melhores homens de Esparta, para dirigir-se às Termópilas. Quando saía, um dos senadores lhe perguntou se trezentos não eram poucos homens para vencer uma batalha. Leônidas respondeu: “Para a vitória somos poucos, mas para a morte somos muitos!”
Leônidas e os seus trezentos estavam plenamente cientes do funesto destino que os aguardava. Não havia vitória possível sobre o exército persa. A única vitória seria morrer com honra e permitir que a Hélade se reerguesse contra o inimigo oriental, para rechaçá-lo de volta às suas terras.
O rei espartano era querido por seus oficiais, soldados de sua guarda e soldados rasos, que o viam, com quase sessenta anos, sofrer cada fração da penúria por que passavam. E sabiam que, quando chegasse a hora do combate, ele assumiria o seu lugar, não em segurança, na retaguarda, mas na linha de frente, no local mais violento e arriscado do campo.
Termópilas era um balneário. A palavra em grego significa “portões quentes”, por causa das fontes termais e dos desfiladeiros estreitos e escarpados que formam as únicas passagens pelas quais é possível se chegar ao local. O Muro Phokiano, em torno do qual tantos dos combates foram travados, não foi construído pelos espartanos e seus aliados no evento, mas já existia antes da batalha, tendo sido erigido no tempo antigo pelos habitantes de Phokis e Lokris como defesa contra as incursões de seus vizinhos do norte, os tessálios e macedônios. O muro, quando os espartanos chegaram para tomar posse do estreito, estava em ruínas. Eles o reconstruíram.
Nessa ocasião, os relatos dizem que Leônidas simplesmente apanhou uma pedra grande e caminhou até um determinado lugar. Ali, pôs a pedra. Ergueu uma segunda e a pôs do lado da primeira. Os homens observavam atônitos seu comandante-em-chefe, curvar-se para pegar uma terceira pedra. Alguém berrou: “Quanto tempo pretendem, imbecis, ficar olhando boquiabertos, enquanto o rei constrói o muro sozinho?”
Com animação, os soldados começaram então a ajudar na construção, mas o rei não interrompeu seus esforços quando viu outras mãos participarem do trabalho, mas prosseguiu junto com eles enquanto a pilha de pedras começou a se erguer e formar uma legítima fortaleza. Mas dizia aos homens para não terem a ilusão de que um muro de pedras preservaria a Hélade, pois esse era o trabalho para um muro de homens.
Essa tônica de comportamento de Leônidas se manteve durante toda a batalha, o rei trabalhava diretamente com seus guerreiros, não se esquivando de nada, fazendo uma pausa para se dirigir a eles individualmente, chamando-os pelo nome se os conhecia, memorizando os nomes de outros que até então lhe eram desconhecidos, tratando-os como camaradas e amigos. Tais palavras, ditas a dois ou três homens, rapidamente se alastravam por todo o acampamento, retransmitidas de guerreiro a guerreiro por toda a linha, enchendo de coragem o coração de todos eles.
O exército dos Persas era realmente imenso, concordando a maior parte dos historiadores que tinha cerca de um milhão de homens — embora alguns pensem que chegava aos dois milhões. Dizia-se que quando os soldados persas passavam secavam os rios, quando acendiam fogueiras de acampamento eram mais numerosas que as estrelas no céu. Questionado sobre isso por um dos comandantes aliados, Leônidas responde: “Ótimo, quando garoto, eu sempre quis tocar as estrelas com a minha lança”. Da mesma forma, quando recebeu o anúncio de que os inimigos estavam avançando, respondeu: “Ótimo, isso significa que estamos nos aproximando.”
Várias outras frases foram eternizadas pelos historiadores, inclusive historiadores persas. No primeiro contato entre Leônidas e Xerxes, como era de praxe ocorrer, a fim de verificar se era possível evitar o combate, o persa lhe disse: “Vocês não têm qualquer chance, somos tantos que quando atacarmos nossas flechas eclipsarão o sol!”. Sem alterar a expressão em seu rosto, Dieneks respondeu: “Então combateremos à sombra.” Xerxes deu então o ultimato: “Entreguem suas armas.” Leônidas(significa Leão) redargüiu com tranqüilidade: “Molon Lave!” (Venha pegá-las!).
Aquele local nas Termópilas fora estrategicamente escolhido por ser estreito, de forma a anular a grande superioridade numérica dos persas. As linhas de batalha que colidiam eram limitadas. A única questão era que a reposição dos persas era interminável, enquanto os espartanos sofreriam praticamente não teriam reposição nas linhas. Mas, dois ou três dias que retivessem o inimigo naquele ponto já seriam essenciais para a sorte da Grécia.
Quando os persas se agruparam para o embate, e suas trombetas ressoaram de além do Estreito, cobrindo toda a planície, Leônidas disse a seus homens, com um largo sorriso: “Comam um bom desjejum, homens, pois hoje jantaremos no Hades.”
Antes do primeiro embate, nas fileiras do inimigo, os soldados começaram a bater as hastes de suas lanças sobre o bojo de seus escudos de bronze, gerando um tumulto que os espartanos chamavam de pseudoandreia. Outros reforçaram a barulheira impelindo, como na guerra, as pontas de suas lanças para o céu e emitindo súplicas aos deuses, e gritos de ameaça e raiva. A gritaria triplicou, aumentou cinco, dez vezes, enquanto a retaguarda e o flanco captavam o clamor e contribuíam com os seus próprios brados e batidas no bronze. Em breve, todo o destacamento estava bradando o grito de guerra. Seu comandante impeliu sua lança à frente e a massa surgiu atrás dele, no movimento de avançar.
Os espartanos não se moviam nem emitiam qualquer som. Aguardavam pacientemente em suas posições, com seus mantos escarlate — que tinham por objetivo evitar que o inimigo visse que estavam sangrando —, nem sombrios nem rígidos, apenas trocando, calmamente, palavras de encorajamento e estímulo, nos preparativos finais para a ação que haviam ensaiado centenas de vezes em treinamento e realizado muitas vezes mais em combate.
Era comum que nesse momento se entoassem canções, o que além de dar tranqüilidade aos homens, dava ainda mais medo ao inimigo, que teria de enfrentar um exército que cantava antes de uma batalha de morte.
Quando iam para cada batalha, os espartanos traçavam seus nomes ou sinais sobre os braceletes improvisados de galhos que chamavam de “etiquetas”, que distinguiriam seus corpos caso, mortos, fossem mutilados de modo medonho demais para serem identificados. Metade, a “metade sangue”, era amarrada no pulso, enquanto a outra metade, “metade vinho”, era deixada num cesto. Usavam galhos porque não tinham valor como saque para o inimigo. Ao voltar, coletavam as “etiquetas”, as que não fossem procuradas na cesta, identificavam os mortos.
Esse talvez fosse o pior de todos os momentos na guerra. Mesmo aqueles que se haviam mantido em total controle durante o combate agora podiam se soltar e até chorar, tanto em reverência aos camaradas perdidos, quanto como uma forma de purgação do medo (hesma phobou, ou “extravasando o medo”).
Em nenhum momento, aqueles duros soldados perdiam o carinho e a ternura, o que nada tinha de efeminado, ao contrário, era considerado uma qualidade essencial de um guerreiro, como sinal de bondade, que sempre deve estar junto com a força. Nos momentos finais, antes da batalha, trocavam escudos com os aliados Téspios, como sinal de respeito de quem lutou lado a lado e iria morrer lado a lado.
Nas Termópilas lutaram apenas os lacedemônios da classe superior, totalmente espartanos, Pares ou Iguais (homoioi), não havia ninguém da classe dos Cavalheiros Comissionados (perioikoi), espartanos subordinados que não gozavam de total cidadania, ou aqueles recrutados nas cidades lacedemônias próximas. Porém, quando o final da batalha se aproximava, e os oficiais espartanos sobreviventes se tornaram tão poucos que já não compunham uma frente de luta, um certo “elemento de fermentação”, de escravos libertos, carregadores de armaduras e escudeiros, tiveram permissão para ocupar os espaços vagos e lutar.
Os oficiais tinham como obrigação, além do comando, socorrer e cuidar de seus homens, impedir que aqueles sob o seu comando, em todos os estágios da batalha — antes, durante e depois —, fossem possuídos pela katalepsis. Tinham que atiçar sua bravura quando esmorecia e refrear sua fúria quando ela ameaçava tirar-lhes o controle. Esses homens usavam o elmo de crista cruzada de um oficial, para distingui-los no campo de batalha.
Esse trabalho poderia ser resumido numa frase: “realizar o comum sob condições incomuns”.
Os Trezentos resistiram seis dias nas Termópilas, impondo aos persas baixas impressionantemente grandes, em proporção ao seu número. Foram finalmente dizimados porque um grego chamado Efialtes os traiu, mostrando aos persas uma trilha secreta usada pelos pastores de cabras, que circundava o desfiladeiro, permitindo aos persas surpreender os espartanos pela retaguarda. Já combalidos, em pequeno número e com duas frentes de batalha, todos que estavam nas Termópilas foram mortos.
O próprio rei Xerxes reconheceu o valor de seus oponentes ao afimar: “Até as rochas são testemunha da coragem humana, glória e resistência desses espartanos.”
Essa batalha permitiu aos atenienses que evacuassem a cidade, em seus navios, deixando para Xerxes, quando lá chegou, apenas uma cidade fantasma. Os gregos se reagruparam e, na batalha marítima de Salamina, que impediu a chegada de víveres e reforços para os contingentes de Xerxes, e na batalha terrestre de Platéia, em que os persas tiveram de se defrontar com uma verdadeira falange de espartanos, da qual tinham recebido apenas uma pequena amostra nas Termópilas, conquistaram a vitória sobre o poderoso inimigo persa.
Um rei espartano se perdeu em batalha, o que não ocorria havia mais de seiscentos anos, mas o oráculo se cumpriu: “Ou Esparta perderia um rei em combate, calamidade que não acontecia há seiscentos anos, ou a cidade cairia.”
Esse episódio da história ainda hoje é guardado e contado como um exemplo comovente para os povos livres do mundo do que alguns homens podem conquistar quando se recusam a se submeter à tirania.
Quem hoje visitar o local das Termópilas, encontrará uma estela de pedra, já quase apagada pelo tempo, esculpida com a frase:
“O xein angellein Lakedaimoniois hoti tede
keimetha tois keinon rhemasi peithomenoi”.
“Digam aos espartanos, estranhos que passam,
Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos.” (tradução livre)
“A guerra, não a paz, produz a virtude. A guerra, não a paz, purga o vício. A guerra, e a preparação para a guerra, suscita tudo que é nobre e digno em um homem. Une-o a seus irmãos e os liga em um amor altruísta, erradicando no cadinho da necessidade tudo que é vil e ignóbil. Ali, no moinho sagrado do assassínio, o homem mais vil pode buscar e encontrar essa parte de si mesmo, oculta sob a corrupção, que reluz intensa e virtuosa, digna de honra diante dos deuses. Não despreze a guerra, efebo, nem imagine que a misericórdia e a compaixão sejam virtudes superiores a andréia, à bravura viril”. (Steven Presfield – Portões de Fogo, 1998)
(SOURCE) - PROECD
Vania Zouravliov
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Arte , Pintura , Vania Zouravliov | Posted on 07:22
Pinturas de Vania Zouravliov - Nascido na Rússia, menino prodígio, aos 13 anos era um verdadeiro caso de sucesso. Considerado um génio por muitos.
Harold Bloom e O Vírus Influência
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Critica , Escritores , Harold Bloom , Literatura | Posted on 22:55
O vírus influência
Aos 80 anos, Harold Bloom, o maior teórico da ansiedade como definidora da história da literatura, lança obra em que repassa sua trajetória intelectual
Marcos Flamínio Peres
Um dos mais importantes críticos norte-americanos desde o pós-guerra, o americano Harold Bloom, 80 anos, acaba de lançar um balanço de sua formação intelectual. Em Anatomy of influence: Literature as a Way of Life (Anatomia da Influência: Literatura como Modo de Vida, Yale University Press), ele relembra a infância pobre vivida durante a Grande Depressão, o ingresso na Universidade Cornell – onde já se destacava como garoto prodígio e grande conhecedor da poesia romântica inglesa –, a transferência para Yale e o desenvolvimento da ideia de influência como definidora da história da literatura.
O ápice de sua trajetória intelectual e também midiática viria, em 1973, com a publicação de A angústia da influência – expressão que o próprio autor chamaria posteriormente, em novo “Prefácio” à obra (1997), de “a ansiedade da influência”, substituindo “anxiety” por “anguish”. Nele, Bloom reescreve a história da literatura baseado no confronto entre obras e autores – um já canônico e influência perene, outro que busca escapar de sua esfera e encontrar um espaço de criação próprio – isto é, originalidade – dentro do cânon da literatura.
Assim, num primeiro momento a obra literária constrói-se com base em um ponto de vista interno, à revelia de fatores fora dela. Um texto não deve explicar o momento histórico em que foi produzido, ou a relação entre as classes socais, ou a situação da mulher, ou de qualquer minoria. Bloom estava claramente alvejando os estudos culturais – mas também sendo alvejado por eles.
No “Prefácio” à segunda edição, 24 anos após a primeira e em plena efervescência dos estudos culturais nas universidades norte-americanas, ele bate pesado: “Estamos hoje numa era da chamada ‘crítica cultural’, que desvaloriza toda literatura de imaginação, que degrada e rebaixa particularmente Shakespeare. A politização do estudo literário destruiu o estudo literário e ainda pode destruir a própria cultura erudita. Shakespeare influenciou o mundo muito mais do que o mundo o influenciou” (A Angústia da influência, 2ª. ed., trad. Marcos Santarrita, Imago, 2002).
Ironicamente, Bloom parece compartilhar a opinião de seus adversários teóricos de início de carreira, os “new critics”. Gente como Robert Penn Warren e Cleanth Brooks, que defendiam a tese de que um texto é uma entidade autônoma, desvinculada de qualquer realidade que não sua própria construção linguística.
Claro que isso não combina com o princípio da influência, que dá sustentação à teoria poética de Bloom e segundo o qual um texto transcende a si próprio para se impor, ao longo do tempo, como angústia/ansiedade a seus leitores/criadores. Contudo, Bloom admite ainda menos que um texto literário seja a explicação de qualquer coisa que não a si próprio: “Historicistas ressentidos de vários credos – derivados de Marx, Foucault e do feminismo político – hoje estudam a literatura essencialmente como história social periférica. O que se jogou fora foi a solidão do leitor, uma subjetividade rejeitada porque, supõe-se, não possui ‘existência social’.”
A ideia de que uma obra possa assombrar o presente com sua originalidade esmagadora, em relação à qual – e contra a qual – as gerações posteriores têm de se afirmar, soa mal aos estudos culturais, pois desparticulariza a especificidade do tempo presente. Aceitar a hipótese da influência como angústia/ansiedade é admitir que o ponto de vista do crítico cultural, firmemente ancorado no presente e com base no qual rearticula toda a tradição literária, não é tão onipotente e, logo, confiável.
E será justamente Shakespeare que Bloom vai apresentar, de modo provocador, como prova irrefutável de sua teoria poética – e também quem ele terá de proteger dos ataques culturalistas: “A verdade maior da influência literária é que é uma ansiedade irresistível: Shakespeare não nos deixa enterrá-lo, nem escapar dele, nem substituí-lo”, diz no “Prefácio”.
Freud, claro, é um dos esteios conceituais de que Bloom assumidamente lança mão, em particular o conflito geracional entre pais e filhos presente no “romance familiar”. Essa imagem, na base da psicanálise, está subjacente à leitura que Bloom faz da literatura, particularmente a de língua inglesa, como luta contínua pela invenção a partir – e contra – dos cânones.
Assim, Wallace Stevens é assombrado por Walt Whitman, assim como Tennyson tem de se ver com a obra de John Keats, e mesmo O Paraíso Perdido de John Milton, tem sobre seus ombros o Hamlet de Shakespeare, como Bloom aponta em seu novo livro.
O sublime
Mas Bloom também era um grande teórico do sublime, entendido como elevação da alma acima das contingências. Primeiramente abordado por Longino na Antiguidade, no pequeno tratado Do Sublime, o tema seria retomado por Kant, na Crítica da Faculdade de Julgar e, em chave política, pelo inglês Edmund Burke – a quem Kant critica.
O sentimento do sublime implica necessariamente o apequenamento do indivíduo diante do inapreensível – seja diante da grandiosidade de uma paisagem natural, como em Kant, seja por meio da retórica, como em Longino.
Em ambos os planos – na natureza ou na linguagem –, o sublime está sempre associado ao “fracasso do pensamento lúcido” e, por consequência, sempre supre uma ausência. Assim, na impossibilidade de o desejo realizar-se diante de algo que transcende a compreensão do indivíduo, só resta a este render-se à ansiedade como princípio criador, pois ela “substitui o desejo como princípio da individuação”, aponta Thomas Weiskel em O Sublime Romântico (ed. Imago, trad. Patrícia Flores da Cunha, 1994). Weiskel, não por acaso, estudou e lecionou com Bloom em Yale.
Inquisição
Ora, para Bloom a psicanálise torna-se então um limitador para a criação artística, à medida que abre mão de “modos de prazer mais primordiais por modos mais refinados”, em sua intenção de proporcionar “maturidade emocional” ao indivíduo. Para Bloom, “não é essa a sabedoria dos poetas fortes, [porque] o sonho de que se abre mão não é apenas uma fantasmagoria de interminável satisfação, mas a maior de todas as ilusões humanas: a visão da imortalidade”.
Bloom está aqui na mesma linha dos críticos que associam Freud à burguesia ascendente do início do século 20.
Já tardiamente, o cineasta alemão Werner Herzog, durante palestra no 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, foi mais longe e comparou a psicanálise à Inquisição porque, afirmou, ela tenta eliminar do homem seu lado “escuro” – e, logo, criativo.
No fundo, ao teorizar sobre a ansiedade na poesia inglesa, Bloom reflete sobre a questão inerente a toda arte: a capacidade da representação – ou, então, seu colapso.
Fonte - Revistacult
HAROLD BLOOM, a litle more...
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Entrevistas , Harold Bloom , Literatura | Posted on 22:27
HAROLD BLOOM
Elas não são idiotas
O crítico americano diz que as crianças devem ser apresentadas à boa literatura, como os adultos
ÉPOCA – Existe solução para incentivar a leitura entre os jovens?
Bloom – Não vejo diferença entre literatura adulta e infantil. Existe, sim, uma diferença essencial entre boa e má literatura. A solução está na boa leitura, em todas as idades. A primeira idéia da coletânea que organizei era criar um compêndio de boa leitura, que se intitularia O Leitor Solitário. Aos poucos, me dei conta de que estava fazendo um livro para jovens, com poemas e histórias simples, sem prejuízo da qualidade. Percebi então que poetas como John Keats e John Donne poderiam servir para alimentar a imaginação da juventude, assim como os contos de C.K. Chesterton e Robert Louis Stevenson.
ÉPOCA – Mas por que existe essa separação entre literatura para pequenos e grandes?
Bloom – Diferenciar livros para crianças e para adultos foi útil na divisão do mercado do século passado, mas hoje encobre um fato muito grave: o de que a estupidez está acabando com a cultura literária. As crianças de hoje não são mais burras que as de antigamente. O problema está em vencer modismos e chamar a atenção para bons exemplos literários. Talvez a queda dos índices de leitura se deva aos maus exemplos que os pais estão dando a seus filhos.
'Lancei a polêmica contra Potter sabendo que, a exemplo de Hamlet, enfrentaria um oceano de aborrecimentos sem acabar com ele. Continuo me incomodando com os fãs do pequeno feiticeiro.'
ÉPOCA – Há uma continuidade entre seus três trabalhos – Angústia da Influência (1973), O Cânone Ocidental (1994) e o recente Gênio?
Bloom – Tenho escrito um só livro, que continua no próximo volume. Talvez por isso eu desagrade aos colegas de universidade. Nunca termino e eles ficam irritados. Minha obra começou com a preocupação de distinguir os poetas fortes dos fracos. Os fortes fundam uma série e brigam entre si. Os fracos são descartados pela história. A literatura não passa de uma luta entre fracos e fortes. A crítica, como gênero literário, envolve batalhas entre bons e maus. Tracei em Angústia da Influência uma genealogia de poetas fortes. A cultura politicamente correta e as feministas detestaram o livro, alegando que eu privilegiava autores mortos, brancos e ocidentais. Dos anos 70 para cá, os valores da cultura literária estão se diluindo e maus autores passam a virar importantes quando não são. Por isso resolvi estabelecer um cânone, uma lista de obras fundamentais. Gênio consiste em um mosaico de referência pessoais. Para mim, a leitura é um gesto particular. Minha função como crítico literário é oferecer um conhecimento menos teórico do que prático da literatura. Meu objetivo é levar as pessoas a ler.
ÉPOCA – Como recuperar o conceito de genialidade em tempos tão céticos como os de hoje?
Bloom – A noção de gênio está fora de moda há muito tempo na universidade, desde meados do século XIX. Os intelectuais a desprezam, por ser um resquício do espiritualismo romântico. Estou tentando restaurar uma idéia arraigada na história do Ocidente há milênios. No livro, tratei de buscar a genealogia dos gênios em todos os tempos e todos os lugares. Resultou no maior volume que já produzi em minha vida, com cerca de 1.000 páginas. E foi mal recebido nos Estados Unidos. Há um preconceito dos intelectuais americanos em relação à genialidade. O que vale aqui é a cultura 'do homem comum'. Genialidade é algo antipático para a cidadania americana. Gênio é uma palavra com duplo sentido e vem dos gregos, fundamentando nossa tradição cultural. Tanto designa uma família de escritores talentosos ao longo da História, ligados por características semelhantes, como indica o daemon, a entidade divina da inspiração que todos carregamos dentro de nós. É um conteúdo sagrado que não podemos ignorar de forma alguma, mesmo que os acadêmicos insistam que ele não existe.
ÉPOCA – Quem são os grandes gênios da literatura?
Bloom – Escritores como Shakespeare, Dante, Cervantes e Milton não têm rival na história literária. São escritores tão fortes que suas obras e personagens alteraram os rumos da história literária futura. Continuamos vivendo sob seu impacto. Eles são dotados de poderes literários extraordinários. Chamá-los de gênios, portanto, é fazer-lhes justiça.
'Leio em português com alguma fluência. Machado de Assis figura entre meus autores favoritos de língua portuguesa. Considero Machado o maior gênio da literatura brasileira do século XIX'
ÉPOCA – O senhor costuma dizer: 'Shakespeare lê você de um modo muito mais completo do que você pode lê-lo'. Isso não é subestimar a capacidade do leitor?
Bloom – Não. O que quero dizer é que a leitura de um gênio como Shakespeare proporciona diversos registros. O iluminista Samuel Johnson, um de meus críticos favoritos, dizia que o leitor comum pode aproveitar Shakespeare a seu modo, no estágio intelectual em que se encontra. A leitura que ele fizer de uma peça como Hamlet terá sido válida se ele tirar proveito dela. Os grandes gênios são espelhos nos quais os leitores se miram e acabam encontrando a si próprios.
ÉPOCA – O que define um gênio?
Bloom – É o autor capaz de mudar a História. Aliás, não acredito em História. Para mim, só existem biografias. As obras literárias não podem ser consideradas apenas como meras manchas nas páginas do tempo. Em tal corrente de biografias estendidas através da linha cronológica, existe uma família de iluminados que compartilham características como naturalidade, intensidade, exuberância e loucura. Gênios são aqueles que não se submetem às leis de seus predecessores.
Edição 246 - 03/02/2003
Fonte - Época
Shakespeare e Harold Bloom
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Harold Bloom , Literatura , Shakespeare | Posted on 22:47
Gênios de papel
De como Shakespeare, uma mente poderosa,
criou personagens também inteligentíssimos
criou personagens também inteligentíssimos
João Gabriel de Lima
(source)
Harold Bloom: sarcasmo e fluência em texto erudito
"Para ter vida após a morte não é necessário ter vivido." Esse paradoxo, cunhado por Samuel Butler, escritor inglês do século XVII, é citado de passagem em Shakespeare – A Invenção do Humano (Objetiva, 896 páginas, 64,90 reais), do crítico literário americano Harold Bloom. Poderia ser, no entanto, a epígrafe do livro. A Invenção do Humano é sobre seres que nunca existiram, mas ainda assim têm vida eterna: os tipos criados por William Shakespeare. Bloom é o autor do polêmico Cânone Ocidental, em que lista os melhores escritores de todos os tempos neste lado do mundo. Em A Invenção do Humano ele faz uma espécie de cânone dos personagens shakespearianos. Esta não é a intenção declarada do livro. Em tese, ele se compõe de pequenos ensaios sobre as principais peças do autor. Só que Bloom pouco se detém no enredo das obras. O ensaio dedicado a Henrique IV é, na realidade, sobre o personagem Falstaff. O texto sobre a comédia Como Gostais disseca a figura de Rosalinda. O capítulo intitulado Otelo se concentra no funcionamento da mente do vilão Iago. À medida que o livro evolui, Bloom compara uns personagens com os outros e, disfarçadamente, os hierarquiza. É uma obra erudita, porém de leitura fluente. O autor é um ensaísta à moda antiga. Evita o jargão da universidade e é deliciosamente sarcástico na defesa de seus pontos de vista. Ainda se dá ao trabalho de embutir pequenas sinopses das peças nos capítulos, pensando no leitor que não está familiarizado com a obra do poeta inglês.
Para Bloom, o que faz a diferença em Shakespeare é que ele, dono de um intelecto superior, criou personagens igualmente inteligentíssimos. Professor universitário em Yale e ácido crítico do meio acadêmico, ele escreve que nunca encontrou entre seus pares gente com o QI comparável aos de Hamlet ou Falstaff. Antes de ir à lista propriamente dita, é necessário saber o que Bloom considera um personagem "intelectualmente superior". Seria aquele capaz de refletir sobre si próprio, na interação com os outros e, a partir daí, "crescer" dentro da peça, modificando sua maneira de pensar e de agir. Há vários tipos nessas condições espalhados pelas peças do autor, mas de acordo com Bloom há alguns que se destacam pela agudeza da mente. No centro do cânone estariam Hamlet e Falstaff. Há um terceiro nome muito citado em A Invenção do Humano, que constitui uma surpresa: Rosalinda, da comédia Como Gostais. O que esses três personagens teriam em comum? Correndo o risco de simplificar demais, poderíamos resumir numa palavra: ironia.
Falstaff é o soldado que é irônico em relação à guerra. Por mais que se esforce para ganhar batalhas, acha que a chamada "honra militar" não vale nada em comparação com os prazeres terrenos. É sua a famosa frase: "Não quero glória. Dêem-me vida". Já Rosalinda é a mulher apaixonada que é irônica em relação ao amor. Sua filosofia de vida pode ser expressa, também, por uma linha da peça: "Os homens têm morrido de tempos em tempos e os vermes os têm devorado, mas não por amor". Por saber que ninguém perece dessa doença, ela não perde tempo sofrendo e usa o cérebro para se sair bem com seus pretendentes. O escritor irlandês George Bernard Shaw achava que Rosalinda se destacava no teatro elizabetano por cortejar o homem em vez de esperar ser cortejada. Harold Bloom vai além. Ele escreve que Rosalinda é nada menos do que "a mais extraordinária e convincente representação de uma mulher na literatura ocidental". Falstaff e Rosalinda usam sua capacidade de reflexão não apenas para reinventar-se, aprendendo a lidar, respectivamente, com as ilusões da guerra e do amor. Eles modificam também outros personagens. Falstaff é o preceptor informal do príncipe Hal, que numa peça posterior irá se transformar no sábio rei Henrique V. Rosalinda usa roupas masculinas para ensinar ao homem que deseja, Orlando, como gostaria de ser amada. É um dos momentos mais divertidos da poesia dramática em todos os tempos.
Lutas de cachorros – E Hamlet? Hamlet seria o mais irônico de todos, alguém que não acredita em nada, nem nas próprias palavras. Dado à permanente reflexão, elabora teorias brilhantes sobre os assuntos mais variados. Não é à toa que ele tem sete monólogos na peça e suas falas ocupam dois terços do mais longo dos textos de Shakespeare. É o personagem que mais se metamorfoseia durante a ação – passa da melancolia imóvel do primeiro ato para uma espécie de "ceticismo desprendido" no quinto, quando participa da carnificina final. Bloom não disfarça, no livro, sua paixão por Shakespeare e pelos tipos que ele criou. É um fã assumido. Gosta dos autores que citaram Shakespeare de maneira positiva, como o filósofo alemão Friedrich Hegel, e enxovalha os que não o consideravam tão bom assim, mesmo que tenham o cabedal de T.S. Eliot, o maior poeta inglês do século XX. Investe contra as montagens modernosas das peças de Shakespeare e os que tentam aplicar à análise de suas obras os mesmos parâmetros da cultura pop contemporânea. Bloom escreve que é impossível comparar o escritor inglês com a cantora Madonna porque a "arte" que ela faz seria correspondente, no século XVI, aos circos de horrores que mostravam lutas de cachorros. Às vezes o ensaísta americano exagera. Ele escreve, por exemplo, que o autor de Hamlet é melhor do que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche como pensador e que seria um psicanalista infinitamente superior ao austríaco Sigmund Freud caso a psicanálise já existisse em seu tempo. Ele contraria ponto por ponto a máxima acadêmica segundo a qual um crítico deve manter distanciamento em relação àquilo que critica. Dado o caráter apaixonante de seu objeto de estudo, no entanto, quem pode condená-lo?
O cânone shakespeariano
Harold Bloom lista dezenas de personagens com QI elevado, mas na opinião dele três se destacam em relação aos demais
Rosalinda, da comédia Como Gostais , é uma mulher que se veste de homem para ensinar a seu pretendente como ele deve se comportar com o sexo oposto. Para Harold Bloom, é a mais extraordinária e convincente personagem feminina em toda a literatura ocidental.
Falstaff, um soldado que não gostava da guerra, foi o tipo mais popular de Shakespeare na época em que o poeta ainda era vivo. Aparece nas duas partes da peça histórica Henrique IV e na comédia As Alegres Comadres de Windsor. Baseado nesta última, o italiano Giuseppe Verdi criou uma ópera genial.
Hamlet é dono de um intelecto tão poderoso que, de acordo com Bloom, poderia ter escrito a maior parte das peças do próprio Shakespeare. Ele é o personagem do autor que fica mais tempo em cena, durante dois terços da peça que leva seu nome. Bloom lamenta que não fique mais: "Poderíamos saber a opinião dele sobre outros assuntos".
Aqui poderá (se o quiser) ler mais sobre este critico literário e professor. (source)
Entrevista a Harold Bloom
Posted by NãoSouEuéaOutra | Posted in Harold Bloom , Literatura , Religião , THE BOOK OF J | Posted on 21:51
Entrevista a Harold Bloom
Edição 1 685 - 31 de Janeiro de 2001
Revista Veja
Leio, logo existo
O mais polêmico dos críticos literários diz
por que ainda se deve ler num mundo
dominado pelas imagens
Flávio Moura
Não falta quem considere o americano Harold Bloom, de 70 anos, o mais importante crítico literário em atividade. Autor de mais de vinte livros sobre literatura e professor há mais de quarenta anos – leciona nas universidades Yale e de Nova York –, ele é, no mínimo, uma figura polêmica. Sem pruridos em atacar seus pares acadêmicos, ele não se cansa de chamá-los de ressentidos e os acusa de estarem matando a literatura com a mania do politicamente correto. Ferrenho defensor dos "valores estéticos", Bloom autoproclamou-se guardião solitário da cultura clássica e exalta os grandes nomes da literatura mundial com uma energia admirável. No ambicioso O Cânone Ocidental, livro lançado há sete anos, ele mapeia o que há de fundamental na história da literatura do Ocidente. Com o controverso Shakespeare – A Invenção do Humano, defende a tese de que seríamos criaturas diferentes se o famoso dramaturgo inglês não houvesse existido. Agora Bloom quer ensinar a ler. É isso que faz no livro Como e Por que Ler (Editora Objetiva), que chega às livrarias do país nesta semana. De sua casa em New Haven, nos Estados Unidos, ele concedeu a seguinte entrevista a VEJA:
Veja – Por que ler?
Bloom – A informação está cada vez mais ao nosso alcance. Mas a sabedoria, que é o tipo mais precioso de conhecimento, essa só pode ser encontrada nos grandes autores da literatura. Esse é o primeiro motivo por que devemos ler. O segundo motivo é que todo bom pensamento, como já diziam os filósofos e os psicólogos, depende da memória. Não é possível pensar sem lembrar – e são os livros que ainda preservam a maior parte de nossa herança cultural. Finalmente, e este motivo está relacionado ao anterior, eu diria que uma democracia depende de pessoas capazes de pensar por si próprias. E ninguém faz isso sem ler.
Veja – Como ler?
Bloom – Tente ler sem considerações políticas, compromissos ideológicos ou preconceitos. Para o livro que estou escrevendo agora, por exemplo, estou relendo a Divina Comédia, de Dante Alighieri, em italiano. Há certos moralismos em Dante que me irritam. Além disso, há seu compromisso com a visão de mundo católica, e eu não confio em nenhum tipo de religião institucionalizada. Mas, ao lê-lo, procuro me manter aberto. O frescor da língua e a força das metáforas me obrigam a deixar todas as minhas opiniões de lado e me render à força daquele texto. É assim que se deve ler.
Veja – O livro Como e Por que Ler foi muito criticado na época do lançamento. Houve quem dissesse que o senhor simplificou demais a questão, outros o acusaram de posar de guardião da "alta cultura". Como responderia a seus críticos?
Bloom – A maior parte das críticas negativas é proveniente de acadêmicos anglo-americanos. Somos inimigos mortais. Há 25 anos venho denunciando esse pessoal. O ensino de literatura no mundo de língua inglesa foi para o inferno. É dominado por ideólogos, por integrantes daquilo que eu chamo de "escola do ressentimento". É gente comprometida com assuntos extraliterários, com mania de desconstruir e relativizar tudo. Eles não se importam com o valor estético. É o politicamente correto que interessa a eles. Por isso, não estou nem aí, nem leio as críticas. Se você tenta ser independente, se não adere a nenhum tipo de moda, se fala honestamente e emite opiniões próprias, se recusa ideologias, inevitavelmente será atacado. É como diz o escritor americano Ralph Waldo Emerson, um dos meus heróis: "O mundo tenta castigar os que não se conformam". Minha maneira de responder aos críticos é escrevendo outros livros.
Veja – Qual o papel da literatura num mundo dominado pelas mídias visuais?
Bloom – Há grandes autores, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Jane Austen e Charles Dickens, que conseguem sobreviver nas adaptações para as mídias visuais. Mas há outros, como Dante Alighieri, John Milton, James Joyce, Marcel Proust ou Franz Kafka, cujo futuro é completamente incerto. O grande autor português José Saramago é outro por quem eu temo. Somos amigos, escrevi um ensaio sobre o magnífico O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ele é dos melhores romancistas que conheço, não deixa nada a dever aos grandes nomes da literatura. Mas, sinceramente, acho que num mundo dominado pela imagem livros difíceis como os dele poderão deixar de ser lidos em vinte ou trinta anos. As crianças estão crescendo cercadas por telas. A longo prazo, não sei qual pode ser o efeito disso sobre a capacidade das pessoas de ler para buscar não apenas informação, mas sabedoria e autoconhecimento.
Veja – Livros como os da série Harry Potter não são uma boa porta de entrada, um meio de despertar nas crianças o interesse pela literatura?
Bloom – Você realmente acha que as crianças vão ler coisas melhores depois de ler Harry Potter? Eu acho que não. E um dos piores escritores da América, Stephen King (ele é terrível, não consigo ler nem dois parágrafos do que escreve), confirmou minhas suspeitas numa resenha que escreveu para o jornal The New York Times. Segundo ele, as crianças que aos 12 anos estão lendo Potter aos 16 estarão prontas para ler os seus livros. Preciso dizer mais? Os Estados Unidos são um país em que a televisão, o cinema, os videogames, os computadores e Stephen King destruíram a leitura.
Veja – Por que não ler os livros de J.K. Rowling, a autora de Harry Potter?
Bloom – Li apenas uma das obras dessa autora. A linguagem é um horror. Ninguém, por exemplo, "caminha" no livro. Os personagens "vão esticar as pernas", o que é obviamente um clichê. E o livro inteiro é assim, escrito com frases desgastadas, de segunda mão. Escrevi uma resenha para o Wall Street Journal falando mal de Harry Potter. A polêmica foi imediata. Foram enviadas mais de 400 cartas me xingando de todos os nomes. A defesa de livros ruins como esses, que vem de todos os lados – dos pais, das crianças, da mídia –, é muito inquietante e nem um pouco saudável.
Veja – Em seu livro anterior, Shakespeare – A Invenção do Humano, o senhor afirma que o dramaturgo William Shakespeare "inventou o humano". Poderia explicar um pouco melhor essa idéia?
Bloom – Grande parte do que hoje consideramos uma personalidade humana foi invenção de Shakespeare. Há hábitos que desenvolvemos, como o de parar de repente e escutar a nós mesmos, que só passaram a existir depois dele. Preste atenção na literatura anterior, em forma de verso, prosa ou teatro. Você simplesmente não encontra monólogos interiores como os que vemos em Shakespeare. Aquilo que gostamos de chamar de nossas "emoções" surgiram pela primeira vez como pensamentos de Shakespeare. Nele, mais do que em qualquer outro escritor, parece que os personagens não foram inventados. É como se eles existissem desde sempre. Assistir a uma peça de Shakespeare na China, em termos de identificação do público com o que se passa no palco, não é muito diferente de assistir em Nova York ou Londres.
Veja – No século XX, tornaram-se muito comuns as leituras psicanalíticas de Shakespeare. O próprio Freud escreveu a respeito da peça Hamlet. Mas o senhor costuma fazer pouco dessas interpretações. Por quê?
Bloom – O romântico Percy Shelley costumava dizer que o demônio deve muito ao poeta John Milton, já que este o retratou de maneira magnífica no livro Paraíso Perdido. Pensaríamos no demônio de maneira diferente se não fosse Milton. Acho que o mesmo ocorre com Freud: ele deve tudo a Shakespeare. Freud é essencialmente Shakespeare em forma de prosa. Se você ler atentamente o que ele fala sobre complexo de Édipo, verá que no fundo não está falando de Édipo, mas de Hamlet. Por isso defendo uma leitura shakespeariana de Freud, e não uma leitura freudiana de Shakespeare. Não podemos negar a Freud, contudo, um lugar entre as quatro ou cinco maiores figuras intelectuais do século XX. E também entre os maiores escritores. Ele era um ótimo ensaísta. Foi o Montaigne de nossa era.
Veja – Num de seus livros mais famosos, A Angústia da Influência, de 1973, o senhor dizia que, para uma geração de autores se constituir, tinha de "matar" a anterior. Isso ainda vale para os autores contemporâneos?
Bloom – Sim. A menos, é claro, que a literatura passe por uma mudança radical, o que por enquanto acho muito difícil. Essa mania atual de cyberliteratura, cyberpoema, jogos verbais etc., tudo isso são erupções tardias do que os dadaístas e surrealistas fizeram, aliás muito melhor, 100 anos atrás. Saramago, por exemplo, parece estar sempre envolvido numa complexa competição com Eça de Queiroz e com Fernando Pessoa, os dois grandes autores portugueses que o precederam. Ainda acho que a literatura caminha por meio de um confronto direto com a produção da geração anterior. Isso não vai mudar. Arte é competição.
Veja – Crítica também?
Bloom – Acho que toda crítica equilibrada, mais do que competitiva, tem de ser pessoal e excêntrica. É o que Oscar Wilde, outro de meus heróis, costumava dizer: a crítica é a única forma civilizada de autobiografia. Não tenho pretensões de fazer crítica científica. Gostaria muito que meus livros, lidos em conjunto, fossem considerados minha autobiografia.
Veja – Em 1979, o senhor publicou The Flight to Lucifer – A Gnostic Fantasy (Vôo para Lucífer – Uma Fantasia Gnóstica), sua única tentativa de escrever ficção. Por que não voltou a ela?
Bloom – Foi um erro. Não devia ter publicado esse livro. Você o conhece? É uma ficção científica na qual o protagonista, uma espécie de Prometeu, vai em busca de seu destino num planeta chamado Lúcifer. Reli a obra numa noite dessas e vi que ela era realmente horrível, fria, sem vida. Os personagens eram todos sobrecarregados. Era pesado, não tinha nada da "vida local" que uma narrativa de verdade deve ter. E aí percebi que eu não era um contador de história, que não podia criar bons personagens. Gostaria que esse livro fosse esquecido de vez. Todo mundo tem a chance de errar uma vez. Essa foi a minha.
Veja – Temas religiosos, como a cabala e o gnosticismo, aparecem também em seus livros de ensaios. Onde termina o crítico e começa o místico?
Bloom – Cresci como judeu ortodoxo, mas continuo achando, e isso já irritou muita gente, que o judaísmo ortodoxo não é mais do que uma leitura equivocada da Bíblia hebraica, feita há 1.800 anos. Foi uma forma de adequar a religião à realidade dos judeus que viviam sob ocupação romana. Hoje não vejo por que agir da mesma forma que naquele tempo. Considero as tradições religiosas como produto de uma época – e a criação do universo como uma grande separação, o criador distanciando-se irremediavelmente de suas criaturas. Até imagino, para além do sistema solar, algo parecido com um deus de verdade. Mas ele, ou ela, certamente não pode nos ouvir. É como diz a máxima: se as preces do homem são uma doença da vontade, então seus credos são uma doença do intelecto.
Veja – O enfoque literário na leitura da Bíblia é mais interessante do que o religioso?
Bloom – Sem dúvida. O texto original do que hoje chamamos de Gênesis, Exodo e Números é trabalho de um narrador magnífico, certamente um dos maiores contadores de história do mundo ocidental. Aliás, em O Livro de J, observo que o autor desses textos foi uma mulher que viveu 3.000 anos atrás, na corte do rei Salomão, um lugar de alta cultura, ceticismo e muita sofisticação psicológica. Pense em figuras como José, Jacó e Jeová. São todos personagens maravilhosos. E os efeitos poéticos do texto são extraordinários, comparáveis a Píndaro. Os profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel também eram grandes escritores, assim como os autores do Evangelho de Marcos e do Livro de Jó. A Bíblia é uma vasta antologia da literatura de toda uma cultura.
Veja – E hoje, há algo que preste nesse filão crescente de literatura religiosa e new age?
Bloom – Não. Não temos um grande místico. Haveria espaço para um, sem dúvida, e até clamo por isso em meu livro Presságios do Milênio, mas não há quem se salve. Só lixo, em qualquer língua que conheço. É preciso deixar claro que nos últimos trinta ou quarenta anos não surgiu nenhum autor religioso com alguma força ou originalidade.
Veja – Como o senhor situaria a literatura brasileira em relação à literatura mundial? Que nomes destacaria?
Bloom – Comecei a estudar português não faz muito tempo, e ainda não consegui me familiarizar direito com a língua. Não posso dizer que conheço a produção literária contemporânea do Brasil. Quanto aos autores mais antigos, como Machado de Assis, só agora começaram a aparecer boas versões de suas obras para o inglês. Foi por isso, também, que não o incluí em O Cânone Ocidental.
Veja – No fim desse livro, o senhor faz uma longa enumeração daqueles que seriam os autores mais importantes do Ocidente, em todas as épocas. Qual o sentido desse tipo de lista?
Bloom – Nenhum. Fiquei muito arrependido de incluir essa lista no livro. Ele ficaria melhor sem ela. Fiz sob protesto, por insistência do meu editor e da agente literária, que achavam que assim o livro venderia mais. Acho perniciosas todas as listas de "melhores livros". São baseadas em leituras apressadas, em premissas equivocadas e sempre acabam deixando de lado algo importante. Portanto, sou completamente contra listas. Inclusive a minha.
(...) o crítico literário norte-americano Harold Bloom descreveu "Os Maias"
como "um dos mais notáveis romances europeus do século 19, comparável,
na sua totalidade, às melhores obras dos grandes mestres russos,
franceses, italianos e ingleses da prosa de ficção".(...)
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