Luis Beltrán - fotografia
Estou parada a olhar o papel. Há vários minutos. Já nem sei, ao certo, quanto tempo se passou. Perdi-me. O assunto é delicado. Não é um tema que se escreva como quem escreve poemas de amor ou até poemas dramáticos! Quero escrever-vos sobre um estado da condição humana que é preciso coragem para praticá-lo. Primeiro, é preciso um motivo e segundo, é preciso força para executá-lo. É o insuportável para lá do limite que faz executar algo que destrua a sensação que aniquila a existência interior do sujeito.
A verdade é que ninguém ouve o grito deste tipo de pessoa. Eu ouvi, e era tão menina e impotente, quanto ignorante acerca da alma e do coração dos homens e os seus desejos mais perversos e assombrosos. Participei na dança, vi-me naqueles limites que devem ser protegidos. Há testemunhas – crianças silenciosas que absorvem cada minuto; não gesticulam, apenas olham paralisadas e gravam tudo ao pormenor numa mudez colossal. Elas colocam tudo numa caixa e guardam silenciosas sem fazer uma pergunta durante anos. Um dia, acorda-se e pergunta-se: “ porquê eu? Why me? Pourquoi moi.” Como e de onde isto veio? Fica-se suspenso!!
Então começa assim:
Não sei o nome dele. Nem me lembro se algum dia o soube. Mas ele existia. Sem nome ou com nome, ele existia. Ele existiu na minha vida. Participou dela à distância, ou seja, aproximou-se o suficiente para poder expressar os sentimentos pelo olhar. E que sentimentos ele transferiu, a cada vez que pousava sobre os meus olhos!! Arrepio-me de sobremaneira!
Julgo que nasci com uma lente fotográfica e câmara de filmar nos olhos. Não posso deixar de ver as fotografias de forma nítida na mente. Há coisas que apenas lembro do pescoço para baixo ou cintura, e isso se deve à minha estatura física de criança – menina. Até sob este prisma fotografei os retalhos.
O Sem Nome, homem recém-chegado ao sitio ou localidade onde vivíamos. Veio sozinho e ninguém sabia a sua origem. Pediu emprego a um familiar meu. Dedicava a sua vida ao trabalho. Havia liberdade e ele não tinha muito que fazer. Foi-lhe oferecido um anexo à casa para ter o seu espaço e tinha um ordenado. Julgo que foi a compaixão do meu tio que acolheu o homem e por conseguinte lhe ofereceu trabalho. Veio para um sítio diferente (talvez, não sei!), não conhecia ninguém. Nunca o vi confraternizando com alguém. Sempre o vi sozinho. Algumas vezes o vi sentado a olhar o horizonte, outras, no tasco a beber um copo de vinho e a maior parte das vezes a fazer o trabalho para o qual foi destinado. Observava-o. Ele era estranho e olhava estranho.
Quanto às mulheres que me rodeavam, senti o medo delas por aquele homem. Ele era calado e ninguém sabia o seu passado. Não tinha família. Minha própria mãe reagia estranhamente. Eu limitava-me a fotografar as impressões ou modos delas reagirem. O Sem Nome vestia-se de negro. Calças pretas, camisa preta e chapéu preto na cabeça. A figura que mais se assemelha fisicamente com ele é o Vitorino, o cantor. Há dias estávamos os dois às compras no mesmo sítio e foi uma espécie de inquietação inicial, apenas depois é que percebi que a figura era o Vitorino. Algo se fundiu ali por momentos, mas obviamente que não há alma para comparar e nem densidade… apenas o físico reflectiu aquela longínqua alma, ou nem foi nada disso. Apenas qualquer coisa, assim como a mola que salta do sitio. Prefiro raciocinar deste modo.
Era menina e foi pelas alturas que entrei para a escola primária quando ocorreu o que me levou a escrever esta biografia. Não encontrei ainda uma forma correcta de escrevê-la. Este homem delegou-me uma responsabilidade psicológica, de contrário, não escreveria sobre ela. Levei anos sem olhar para isto, o sono da bela adormecida... contudo a vida tratou de sepultar o morto - vivo aqui dentro e com uma voz própria… o facto é que o Sem Nome, por demasiado tempo concentrou a sua atenção no meu ser menina. Como? Através dos olhos, o olhar. Eles falavam imenso!! Tanto... Os olhos escuros como a noite mais profunda me perseguiam cada vez que passavam por mim e pelos meus. Via-lhe a alma. Um abismo entre montanhas, olhos mergulhados num vale denso onde a luz do sol pouco chegava; um rio negro perdido entre árvores. Só agora posso definir aquele olhar, o olhar da desolação profunda da existência. Um ser completamente preso no limbo. Ausência profunda de amor, um mergulho pesado na solidão da vida. Contudo ali, existia uma maldade que ainda não compreendi, como vão poder perceber.Podia ter escolhido outra criança.
Eu adorava dançar. O meu tempo era passado a dançar. Dançava para qualquer pessoa. Dançava sozinha na rua. Tinha aquele bichinho da dança bem presente no corpo. Gostava imenso de rodar a saia e balançar o quadril. Um dia, estava a dançar e ele, o Sem Nome passou. Será a primeira vez que estará tão próximo… demasiado próximo. Aqueles olhos, aquele olhar abissal com que me olhou nos meus… entrei num estado de hipnose, fiquei presa. Senti um medo tão profundo, a invasão do olhar devorou-me a paz e a alegria. Recordo de tremer tanto. Era só negridão a dirigir-se para os meus olhos. Momentos depois ele foi afastando-se na rua, e eu parada a olhar. Assustada. Silenciei-me. Nunca disse o quanto aquele homem me perturbava. Ele jogava comigo através do olhar. Calado e olhando-me directo. Passei a antecipá-lo. Isso provocava-me inquietação. Talvez eu imaginasse demais, por conta da forma como ele olhava. Como criança não percebia a força de olhares tão negros sobre mim.
Fizeram-me um baloiço numa árvore. No cimo da colina em direcção ao lago. A casa tinha um lago. Uma das mais belas vistas. Ali pude assistir aos mais belos nasceres e pores-do-sol. As tonalidades do entardecer primaveril, veranil e outonal eram uma loucura aos sentidos. Eram tão gigantes que os meus braços abertos não conseguiam abraçar. Eu balançava às tardes, às vezes a qualquer hora. Na época do verão, ficava sentada debaixo da árvore. O baloiço era uma aventura, queria ver até que ponto conseguia elevar-me nele. Cai muitas vezes e, uma vez elevei demais que levei com um susto, e tomei isso como aviso quanto aos meus limites.
Às vezes havia uns piqueniques debaixo da árvore. O Sem Nome costumava passar por aquele lugar a uma distância que permitia saber o que ocorria naquela e debaixo da árvore. Vi-o passar várias vezes quando estava a andar de baloiço. Aquele caminhar lento e às vezes obtuso mas carregado no semblante. Eu não sabia definir o medo, apenas sentia o medo.
Certa manhã levantei-me muito cedo. Quando digo cedo, é mesmo cedo. Abri a porta de casa e sai a correr. Fatalmente a correr. Nem sei bem onde ia com tanta velocidade e porque tive aquele institnto. O sol surgia no horizonte. Todos estavam dentro de casa. Apenas eu sai sem ninguém perceber. Sai louca em direcção à árvore lá em cima. Sai feliz. Recordo-me perfeitamente da alegria e a saltitar. Efusiva ia não sei onde, completamente cega. Preciso notar que estava eléctrica e contente. Mas o que vi? O que iria encontrar, assim sem preparação? O que não se espera na vida encontrar.
O Sem Nome se suicidando. Suicídio por enforcamento. Com uma das cordas do baloiço. Fiquei olhando o homem pendurado na árvore. Depois comecei a berrar. Corri o mais que pude. Minha boca gritava, mãe mãe mãããããeeeeeeee… minha mãe assustadíssima, pergunta-me o que é, e eu quase gaga disse-lhe que tinha um homem pendurado na árvore. O que estás inventando? Qual árvore?- perguntava ela, e eu respondi, a árvore do baloiço. Provoquei uma agitação e, também fui agressivamente afastada de tudo. Para minha protecção, como é normal. Mas eu não entendi assim. Eu queria entender o que estava ocorrendo. Só ouvi dizer, o homem matou-se. Contudo, consegui fugir do local onde tinha sido aprisionada e voltei ao sitio e pude assistir sem que ninguém desse por mim, a retirada do homem da árvore. Recordo-me perfeitamente do nó, da ferida em volta do pescoço, que estava tão vermelha, como se fosse queimada. O homem debatera-se em agonia, porque a altura da árvore não era muita.
Guardei a imagem dele pendurado, suspenso… também a sua retirada da árvore e colocado no chão. O que recordo depois? O facto de ter sido descoberta a espreitar tudo. Zangaram-se muito comigo e voltei para dentro de casa contrariada e disseram que não podia passar um limite desenhado no espaço exterior da casa, em especial as traseiras. O espaço que dava acesso ao local. Vi-me barata tonta. Irritada e ofendida. Não percebia nada e a memória se apaga.
O lugar do baloiço e árvore deixaram de ser um local de brincadeira e convívio. Nunca mais me aproximei. Nunca houve uma conversa sobre isto, nunca ninguém me perguntou como me sentia. Com o tempo foi ficando sufocado lá no fundo do meu coração de criança-menina.
Muito mais tarde, passei a recordar isto, e cada vez mais com cada pormenor sem fazer esforço, iniciara-se um processo de censura profunda. Os olhos, como que me olhava… tudo tão negro e depois, crueldade… o baloiço e a árvore. Ele determinou que eu não haveria de esquecer os seus olhos… todo nú me olhou e delegou!!!
Tenho a boca nas perguntas... e não acabei de escrever isto!!!
NãoSouEuéaOutra in «Biografia»
Luis Beltrán - fotografia